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O altar, o sonho e a necessidade mítica da cultura

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Há algo na cultura que antecede a forma, a lei e a razão. Algo que não nasce da escassez, mas do excesso. Antes de qualquer organização social, antes da técnica e do discurso sistemático, o humano parece ter intuído a necessidade de um lugar — um ponto de suspensão — onde a vida pudesse ser colocada diante de si mesma. Esse lugar é o altar. Não apenas o altar religioso, mas o altar simbólico: o espaço onde o mundo é interrompido para que um sonho possa ser acolhido. Essa necessidade não é abstrata. Ela é quase orgânica, intestinal. Como se a consciência, ao se descobrir lançada num mundo instável e finito, precisasse erguer um eixo em torno do qual o sentido pudesse circular. O altar não é, em sua origem, um instrumento de poder; é um dispositivo de cuidado. Ali, algo frágil é depositado — uma imagem, uma esperança, um temor — para não se perder no fluxo indiferenciado da existência. O que se coloca no altar é sempre um sonho. Não um devaneio qualquer, mas aquele sonho que insiste,...

Tránsito Soto, Márcio Alvino e a permanente exclusão

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Há personagens que não pedem licença à história; operam nela. Tránsito Soto, em A Casa dos Espíritos , é uma dessas figuras. Ela não governa, não legisla, não moraliza. Conhece os atalhos — e por isso atravessa. Sua força nasce do colapso: quanto mais frágil o centro, mais indispensável a margem que resolve. Esse é o ponto de contato com um tipo de poder contemporâneo que, no Brasil, se consolidou após 2016: o poder que administra a exclusão em vez de superá-la. No filme, quando a ordem formal entra em crise, é Tránsito quem garante passagem. Não por virtude abstrata, mas por inteligência prática. Ela é a ética da sobrevivência em um sistema injusto. A narrativa não a romantiza: expõe o paradoxo. Sua eficácia depende da permanência da injustiça. Se a estrutura mudasse, o seu lugar deixaria de existir. Transponha o mecanismo para o presente. Em muitas cidades, APAE(s) e Santas Casas tornaram-se casas institucionais da carência: salvam vidas, acolhem famílias, sustentam o cotidiano — e, ...

Padre Júlio: agonia, angústia e liberdade

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Há acontecimentos que não se encerram no fato, na notícia ou nas conversas. Eles permanecem vibrando, como um ruído baixo que atravessa o cotidiano e altera o modo como respiramos. Nos cutuca e nos desafia. O ataque sofrido por Padre Júlio Lancellotti pertence a essa ordem. Não é apenas um episódio político, nem apenas uma crise eclesiástica vergonhosa. É um acontecimento que nos alcança por dentro, produzindo agonia e angústia, deslocando o eixo do que julgávamos seguro. A agonia surge primeiro. Ela é quase física. Um aperto silencioso diante da constatação de que alguém que encarna, com rara coerência, o núcleo ético do Evangelho — a presença junto aos pobres, a defesa incondicional da dignidade humana, a recusa da exclusão — torna-se alvo de perseguição pública. A agonia nasce quando percebemos que aquilo que deveria proteger — a cidade, a política, a própria Igreja — se move, por ação ou omissão, contra quem testemunha o essencial. É a sensação de sufocamento que emerge quando o ...

Suzano entre Feridas e Futuro: o que revelam Raul Brasil, a violência e a Várzea do Tietê

da tragédia da Raul Brasil ao aterro clandestino na Várzea: por que Suzano se tornou símbolo de uma crise que ultrapassa a cidade e atinge a própria ideia de civilização. Suzano vive um ciclo contínuo de golpes contra a vida. Desde o massacre da Escola Raul Brasil, em 2019, a cidade carregou uma das maiores tragédias de sua história sem que o poder público estruturasse políticas reais de reparação, cuidado ou prevenção. O trauma coletivo, não elaborado, tornou-se parte da paisagem social — e, como consequência, vemos crescer a violência, o medo e a sensação de abandono. Nos últimos anos, outro sintoma grave se instalou: a destruição da APA do Rio Tietê no Miguel Badra, fruto de operações de aterro e especulação que avançam sobre o território com a conivência do Estado. Quando uma cidade não protege suas crianças e também não protege seu rio, ela revela que algo fundamental se rompeu: o compromisso com o comum. O aumento recente dos homicídios no Alto Tietê — como mostram os dados d...

O Vale e o Corpo

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“Quando uma cidade repudia o direito de todos aprenderem juntos, não é o decreto que está em julgamento —é a própria ideia de humanidade.”— Reflexão sobre o voto da Câmara de Mogi das Cruzes, 2025 Há algo de podre no gesto de quem, em nome da pureza, ergue muros para esconder a humanidade. Chamam de ordem, chamam de decência, chamam de bem — mas o nome verdadeiro disso é medo. Medo daquilo que nos lembra que somos frágeis. Medo do corpo que não se encaixa. Medo da dor que não escolhe classe, credo nem cor. O capacitismo é essa arquitetura do medo. É o velho instinto de banir o diferente — o mesmo que já construiu leprosários, senzalas, manicômios, asilos e prisões. É o hábito de olhar o outro e ver nele o erro, o defeito, o castigo. Mas o erro nunca esteve no corpo. O erro está na cultura que transforma diferença em falha e vulnerabilidade em vergonha.   Cristãos de fachada Vivemos uma era em que muitos gritam o nome de Deus, mas esquecem o gesto do Cristo. Pregam dos pú...

Os Três Vértices da Crise Civilizacional: Capitalismo, Imperialismo e Ignorância

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“A desumanização não é apenas o resultado da exploração, mas da incapacidade de compreender o outro como sujeito.” — Paulo Freire I. O Capitalismo em Ruína e a Política do Medo O capitalismo, em seu estágio avançado, perdeu a capacidade de oferecer sentido. Ele sobrevive através do medo e da precariedade, convertendo o trabalho em sobrevivência e o desejo em mercadoria. Quando a vida se reduz a índices de produtividade, o ser humano passa a buscar, desesperadamente, uma forma de pertencimento — e é nesse vazio que a extrema-direita encontra solo fértil. O neoliberalismo, ao dissolver vínculos e destruir o comum, produz não apenas pobreza material, mas também desagregação moral e simbólica. A insegurança torna-se o cimento de novas lealdades autoritárias. A promessa fascista de “ordem” e “identidade” é, na verdade, a nostalgia de um mundo que nunca existiu — mas que dá forma ao medo contemporâneo. II. O Imperialismo da Miséria e a Colonização do Imaginário O imperialismo atual ...

Entre o Crime e o Estado: o Humano como Fronteira da Segurança Pública

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“Não há paz onde o humano é usado como instrumento — seja pelo crime, seja pelo Estado.” A chacina ocorrida no Rio de Janeiro, mais uma vez, impõe ao país a tarefa de olhar para si. A justificativa do combate ao crime organizado — legítima e necessária — não pode servir como licença para o extermínio. A morte, quando se repete como política, deixa de ser exceção: transforma-se em método. E quando o método é a morte, o Estado deixa de proteger a vida para administrar o medo.  Desde o massacre do Carandiru, em 1992, até as operações recentes em favelas e periferias, o padrão é o mesmo: a violência do crime é respondida pela violência do Estado, e o resultado é a destruição do humano nos dois lados. O criminoso perde sua condição de pessoa; o policial perde a de cidadão.  No meio, uma sociedade inteira assiste, atônita, à naturalização do horror. A defesa da vida exige que sejamos capazes de distinguir combate de vingança . Combater o crime organizado é enfrentar uma estrutura c...