Entre o Crime e o Estado: o Humano como Fronteira da Segurança Pública


“Não há paz onde o humano é usado como instrumento — seja pelo crime, seja pelo Estado.”
A chacina ocorrida no Rio de Janeiro, mais uma vez, impõe ao país a tarefa de olhar para si. A justificativa do combate ao crime organizado — legítima e necessária — não pode servir como licença para o extermínio. A morte, quando se repete como política, deixa de ser exceção: transforma-se em método. E quando o método é a morte, o Estado deixa de proteger a vida para administrar o medo. Desde o massacre do Carandiru, em 1992, até as operações recentes em favelas e periferias, o padrão é o mesmo: a violência do crime é respondida pela violência do Estado, e o resultado é a destruição do humano nos dois lados. O criminoso perde sua condição de pessoa; o policial perde a de cidadão. 

No meio, uma sociedade inteira assiste, atônita, à naturalização do horror.

A defesa da vida exige que sejamos capazes de distinguir combate de vingança. Combater o crime organizado é enfrentar uma estrutura complexa, econômica, política e territorial que se alimenta da ausência do Estado — não de sua presença violenta. O crime floresce onde a política fracassa, onde a educação cede lugar ao abandono e a esperança é substituída pela sobrevivência. Nenhum tiro é capaz de corrigir isso.

A política de segurança, no Brasil, não amadureceu. Continua sendo conduzida como se a sociedade fosse um campo de guerra. As forças policiais, majoritariamente compostas por homens e mulheres oriundos das mesmas classes que morrem nas favelas, são lançadas em operações que os transformam em instrumentos descartáveis de uma lógica de poder que não se renova. A cada operação, o Estado mata — e também morre um pouco.

Enquanto o crime se reorganiza com inteligência, tecnologia e controle territorial, o Estado reage com improviso, retórica e força bruta. A racionalidade da criminalidade é sistêmica; a do poder público, episódica. A primeira aprendeu a agir no tempo — a segunda continua prisioneira do instante. O crime cria vínculos, ainda que perversos; o Estado rompe os seus, ao não dialogar com a comunidade que deveria proteger.

Não é possível combater o crime sem compreender as raízes que o sustentam. Há uma economia subterrânea que nasce da desigualdade, um poder simbólico que se alimenta da ausência de futuro, e uma teologia distorcida que transforma o medo em fé. A guerra contra o tráfico é também uma guerra contra o espelho: o reflexo de um país que insiste em tratar sua própria ferida com mais ferimento. O Estado brasileiro ainda não compreendeu que segurança não é coerção: é convivência. Que a defesa social é mais do que repressão: é mediação, presença, cuidado, política pública e tempo. O crime se alimenta da pressa e do desespero; a justiça, da paciência e do trabalho. Combater o crime organizado exige inteligência, prevenção, confiança e, sobretudo, uma ética que reconheça que nenhum cidadão — culpado ou inocente — perde o direito à humanidade.

É possível, sim, ser firme sem ser cruel; ser justo sem ser violento. Um Estado verdadeiramente forte é aquele que reconhece a fragilidade da vida como sua razão de existir. O crime destrói o humano; o Estado não pode destruí-lo em nome de combatê-lo.

Se o país quiser romper o ciclo de violência, terá de reeducar a si mesmo: redefinir o que entende por poder, por justiça e por vitória. Vencer o crime não é eliminar corpos — é restaurar o sentido de comunidade. É quando a vida volta a valer mais do que o medo que uma nação se torna, enfim, segura.


Comentários

Alan Geraldo disse…
Excelente texto. 👏👏👏👏