O altar, o sonho e a necessidade mítica da cultura
Há algo na cultura que antecede a forma, a lei e a razão. Algo que não nasce da escassez, mas do excesso. Antes de qualquer organização social, antes da técnica e do discurso sistemático, o humano parece ter intuído a necessidade de um lugar — um ponto de suspensão — onde a vida pudesse ser colocada diante de si mesma. Esse lugar é o altar. Não apenas o altar religioso, mas o altar simbólico: o espaço onde o mundo é interrompido para que um sonho possa ser acolhido.
Essa necessidade não é abstrata. Ela é quase orgânica,
intestinal. Como se a consciência, ao se descobrir lançada num mundo instável e
finito, precisasse erguer um eixo em torno do qual o sentido pudesse circular.
O altar não é, em sua origem, um instrumento de poder; é um dispositivo de
cuidado. Ali, algo frágil é depositado — uma imagem, uma esperança, um temor —
para não se perder no fluxo indiferenciado da existência.
O que se coloca no altar é sempre um sonho. Não um devaneio
qualquer, mas aquele sonho que insiste, que retorna, que pede linguagem. O
sonho é a matéria-prima do mito. Ele não é ainda verdade nem mentira; é
potência de sentido. Ao ser acolhido no altar, o sonho é nutrido pela
imaginação coletiva, atravessado por gestos, palavras, cantos e silêncios. É
nesse processo que ele se torna divino — não porque venha de fora do humano,
mas porque ultrapassa o indivíduo que o sonhou.
A imaginação, nesse contexto, não é fantasia ornamental. Ela
é força ontológica. É a capacidade de dar forma ao invisível, de tornar
habitável o indizível. Quando uma cultura perde a imaginação, não perde apenas
beleza; perde orientação. O mito nasce exatamente dessa função orientadora: ele
não explica o mundo, mas o torna suportável. Ele cria mapas simbólicos para
atravessar o caos.
Os ritos surgem como a repetição cuidadosa desse gesto
inaugural. Repetir, aqui, não é copiar; é manter vivo. Cada rito reinscreve o
sonho no tempo, impedindo que ele se dissolva ou se privatize. A liturgia é a
coreografia dessa memória viva: ela ensina o corpo a lembrar do que a razão,
sozinha, não consegue sustentar. O símbolo, por sua vez, é a condensação máxima
dessa operação — um fragmento carregado de mundo.
É por isso que toda cultura é, em alguma medida, mítica.
Mesmo quando se proclama racional, técnica ou secular, ela continua erguendo
altares. Eles apenas mudam de forma. Onde antes havia templos, surgem palcos,
telas, tribunais, mercados, laboratórios. A necessidade permanece, mas o sonho
que se deposita nesses altares nem sempre é reconhecido como tal. Muitas vezes,
ele é capturado, empobrecido, transformado em instrumento.
Quando o altar deixa de ser lugar de cuidado e se torna
lugar de dominação, o mito se degrada. Ele já não amplia a consciência; a
estreita. A liturgia vira espetáculo vazio, o símbolo vira fetiche, o sonho
vira mercadoria. Ainda assim, algo resiste. Porque a natureza mítica da cultura
não pode ser extirpada — apenas reprimida. E tudo o que é reprimido retorna,
frequentemente de forma distorcida.
Talvez a tarefa do pensamento hoje não seja destruir os
altares, mas reaprender a reconhecê-los. Perguntar que sonhos estamos colocando
neles. Quais são acolhidos, quais são interditados, quais permanecem sem
linguagem, sem rito, sem espaço para respirar. Recuperar o sentido do altar não
como lugar de submissão, mas como lugar de escuta.
No fundo, o mito não é o passado da humanidade; é sua
condição permanente. Enquanto houver consciência, haverá sonhos que pedem
forma. Enquanto houver imaginação, haverá tentativas de torná-los
compartilháveis. A cultura nasce e renasce desse gesto simples e radical:
interromper o mundo por um instante e dizer, diante de um altar — visível ou
invisível — que aquilo que sonhamos importa o suficiente para não ser
esquecido.
Sigamos!

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