Tránsito Soto, Márcio Alvino e a permanente exclusão
Há personagens que não pedem licença à história; operam nela. Tránsito Soto, em A Casa dos Espíritos, é uma dessas figuras. Ela não governa, não legisla, não moraliza. Conhece os atalhos — e por isso atravessa. Sua força nasce do colapso: quanto mais frágil o centro, mais indispensável a margem que resolve. Esse é o ponto de contato com um tipo de poder contemporâneo que, no Brasil, se consolidou após 2016: o poder que administra a exclusão em vez de superá-la.
No
filme, quando a ordem formal entra em crise, é Tránsito quem garante passagem.
Não por virtude abstrata, mas por inteligência prática. Ela é a ética da
sobrevivência em um sistema injusto. A narrativa não a romantiza: expõe o
paradoxo. Sua eficácia depende da permanência da injustiça. Se a estrutura
mudasse, o seu lugar deixaria de existir.
Transponha
o mecanismo para o presente. Em muitas cidades, APAE(s) e Santas Casas
tornaram-se casas institucionais da carência: salvam vidas, acolhem famílias,
sustentam o cotidiano — e, ao mesmo tempo, revelam a ausência de uma política
pública estruturante. Onde o direito não se universaliza, o acesso vira
exceção. Onde a exceção se repete, alguém passa a operá-la.
É
nesse circuito que se fortalecem mandatos cujo poder deriva menos de projeto e
mais de intermediação. Figuras como Márcio Alvino ascendem num arranjo em que a
política se desloca do planejamento para a distribuição fragmentada de
recursos. Emendas substituem sistemas; anúncios substituem políticas; a
visibilidade ocupa o lugar da responsabilidade. Não se trata de negar a
importância do recurso que chega — trata-se de perguntar por que ele depende de
um padrinho.
A
analogia com Tránsito não é moral; é funcional. Assim como ela conhece os
subterrâneos do poder, o parlamentar que domina o circuito das emendas conhece
as alavancas da carência. Ambos resolvem — e, ao resolver, estabilizam. O
alívio imediato evita o colapso, mas também posterga a transformação. A
exclusão, administrada, torna-se permanente.
Há,
contudo, uma diferença decisiva. Tránsito é uma personagem que revela o
mecanismo; o mandato real o reproduz. No cinema, a casa range como memória; na
política, a fila persiste como rotina. O filme nos oferece distância crítica; a
cidade nos impõe proximidade ética.
O
resultado é um paradoxo cruel: quanto mais frágeis as políticas estruturantes,
mais fortes os intermediários. O voto reconhece quem consegue, não quem
constrói. A gratidão ocupa o lugar do direito. A exceção vira método. O poder
cresce sem projeto porque a ausência de projeto o alimenta.
Não
é a APAE o problema; é o fato de ela ser a única referência. Não é a Santa
Casa; é o fato de ela ser o último recurso. Não é o parlamentar que anuncia; é
o sistema que precisa do anúncio para funcionar. A exclusão deixa de ser falha
— torna-se condição de possibilidade.
O
que A Casa dos Espíritos nos ensina é simples e exigente: casas que não
elaboram seus fantasmas rangem. Sociedades que não transformam a carência em
direito reencenam a carência. Enquanto isso, operadores de passagem prosperam.
O poder não desaparece; muda de lugar.
Encerrar
esse ciclo exige trocar a política do gesto pela política da estrutura:
planejamento territorial, financiamento estável, redes integradas, controle
público, avaliação contínua. Exige deslocar a gratidão para a cidadania. Exige,
sobretudo, aceitar o risco da mudança — porque a mudança, ao contrário da
intermediação, retira o chão de quem vive da exceção.
Tránsito
sobreviveria a um mundo justo? Talvez não. E é exatamente por isso que a
justiça importa.
Sigamos!!

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