O Vale e o Corpo
“Quando uma cidade repudia o direito de todos aprenderem juntos, não é o decreto que está em julgamento —é a própria ideia de humanidade.”— Reflexão sobre o voto da Câmara de Mogi das Cruzes, 2025
Há
algo de podre no gesto de quem, em nome da pureza, ergue muros para esconder a
humanidade. Chamam de ordem, chamam de decência, chamam de bem — mas o nome
verdadeiro disso é medo. Medo daquilo que nos lembra que somos frágeis. Medo do
corpo que não se encaixa. Medo da dor que não escolhe classe, credo nem cor.
O
capacitismo é essa arquitetura do medo. É o velho instinto de banir o
diferente — o mesmo que já construiu leprosários, senzalas, manicômios, asilos
e prisões. É o hábito de olhar o outro e ver nele o erro, o defeito, o castigo.
Mas o erro nunca esteve no corpo. O erro está na cultura que transforma
diferença em falha e vulnerabilidade em vergonha.
Cristãos
de fachada
Vivemos
uma era em que muitos gritam o nome de Deus, mas esquecem o gesto do Cristo. Pregam
dos púlpitos e das tribunas, mas seus olhos são de pedra. Chamam-se “cidadãos
de bem”, mas se comportam como sepulcros caiados — limpos por fora,
mortos por dentro. Usam a fé como verniz, não como compromisso. Confundem moral
com salvação e caridade com poder.
Cristo
não fundou igrejas, fundou encontros. Não separou, misturou-se. Não curou para
normalizar, mas para libertar do estigma. Ele tocou o leproso, conversou com a
prostituta, defendeu o estrangeiro, acolheu a criança e morreu entre ladrões. Hoje,
quem se diz seu seguidor ergue muros e vota contra a inclusão, como se o amor
tivesse limite orçamentário.
O
Cristo histórico tocava corpos impuros. Os novos cristãos lavam as mãos.
A
ferida e a cura
A
deficiência não é doença. É forma da vida, tal como a cor da pele ou o timbre
da voz. É uma das expressões da matéria viva — e cada uma delas exige um mundo
que saiba acolher. Mas vivemos numa civilização que só reconhece o que é útil,
o que produz, o que rende. E tudo o que foge à norma é descartado: o corpo, a
mente, o afeto, a vocação. Há quem sofra bullying não por ser fraco, mas por
ser diferente demais, sensível demais, verdadeiro demais.
Somos
todos vulneráveis, mas passamos a vida fingindo força. O capacitismo é o
disfarce social do nosso medo de ser frágeis. É o modo como o mundo moderno
mascara o sofrimento — fingindo eficiência, fingindo saúde, fingindo fé.
O
vale permanece
O
decreto federal que fala de inclusão não é o problema. O problema é o país que
ainda acredita que existem corpos que não pertencem. O vale dos leprosos foi
demolido de pedra, mas reconstruído na cultura — agora de muros invisíveis, de
olhares atravessados, de piadas, de silêncios e moções de repúdio.
O vale continua em cada sala onde o diferente é isolado, em cada escola que não
quer adaptar-se, em cada voto que protege o conforto da maioria.
E
os que o mantêm de pé se dizem defensores da moral cristã. Mas que fé é essa
que repele o humano? Que evangelho é esse que transforma compaixão em ameaça? Que
Deus é esse que exige pureza e não ternura?
Plebeia
esperança
Há
uma teologia do toque que ainda precisamos reaprender. Não a teologia dos
templos, mas a dos gestos. A que reconhece o outro como extensão de nós. A que
vê no corpo vulnerável a lembrança do nosso próprio limite.
A
educação inclusiva é, antes de tudo, um aprendizado de convivência. Não
se trata apenas de política pública, mas de um modo de ser: o de caminhar
juntos, sem deixar ninguém no vale.
Cristo
tocava para curar o olhar da comunidade, não o corpo do doente. É esse toque
que falta hoje — o toque da coragem, da escuta, da ternura política. E enquanto
os “cristãos de plantão” continuarem disputando quem é mais puro, o Cristo
continuará do lado de fora, caminhando entre os que foram deixados à margem.
Porque
o verdadeiro milagre não é andar sobre as águas — é continuar acreditando no
humano, mesmo quando o humano parece impossível.

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