Padre Júlio: agonia, angústia e liberdade
Há acontecimentos que não se encerram no fato, na notícia ou nas conversas. Eles permanecem vibrando, como um ruído baixo que atravessa o cotidiano e altera o modo como respiramos. Nos cutuca e nos desafia. O ataque sofrido por Padre Júlio Lancellotti pertence a essa ordem. Não é apenas um episódio político, nem apenas uma crise eclesiástica vergonhosa. É um acontecimento que nos alcança por dentro, produzindo agonia e angústia, deslocando o eixo do que julgávamos seguro.
A agonia surge
primeiro. Ela é quase física. Um aperto silencioso diante da constatação de que
alguém que encarna, com rara coerência, o núcleo ético do Evangelho — a
presença junto aos pobres, a defesa incondicional da dignidade humana, a recusa
da exclusão — torna-se alvo de perseguição pública. A agonia nasce quando
percebemos que aquilo que deveria proteger — a cidade, a política, a própria
Igreja — se move, por ação ou omissão, contra quem testemunha o essencial. É a
sensação de sufocamento que emerge quando o justo é pressionado e deixado à
própria sorte.
Essa agonia não é
apenas empatia com Padre Júlio. Ela se instala como um estado coletivo, porque
revela algo mais profundo: a fragilidade dos pactos morais que sustentam a vida
em comum. Se a compaixão se torna incômoda, se a solidariedade passa a ser tratada
como ameaça, então algo se deslocou perigosamente no fundo da cultura.
Logo depois, ou talvez
ao mesmo tempo, instala-se a angústia. Diferente da agonia, ela não tem um
contorno preciso. Não se fixa apenas no ataque, mas se espalha como uma
pergunta sem resposta clara. Que tipo de sociedade é essa que reage com
hostilidade a quem cuida dos que não contam? Que Igreja é essa que hesita
quando o Evangelho se torna conflito? Que cidade é essa que prefere o
apagamento à convivência?
A angústia não aponta
para um objeto específico; ela abre um campo. É o pressentimento de que o
sentido está em disputa. Por isso ela produz vigília. Não permite distração
confortável. Não autoriza o retorno tranquilo às rotinas. Ela mantém os olhos
abertos, mesmo quando o cansaço convida ao recuo.
Nesse estado, medo e
desesperança se aproximam. O medo de que a violência simbólica se normalize. A
desesperança de que a fidelidade ao humano seja sempre punida. Esses afetos não
são imaginários; eles fazem parte do cálculo implícito do poder quando ataca
figuras como Padre Júlio. Cansar, isolar, produzir silêncio, tornar a ética um
fardo individual.
Mas é justamente aqui
que se abre uma possibilidade menos óbvia, mais difícil e, paradoxalmente,
libertadora.
Agonia e angústia,
quando não são negadas nem anestesiadas, podem operar como forças de depuração.
Elas arrancam as ilusões de neutralidade, desfazem a expectativa de proteção
institucional, quebram a fantasia de que o bem será sempre reconhecido. O que resta,
depois disso, é mais duro — e mais verdadeiro.
A agonia ensina que não
há lugar confortável para quem permanece fiel ao essencial.
A angústia ensina que não há garantias históricas nem morais pré-dadas.
E é dessa dupla
aprendizagem que pode nascer uma forma rara de liberdade: a liberdade de quem
já não depende de aprovação, de quem não confunde instituição com verdade, de
quem não espera que o justo seja premiado para continuar sendo justo.
Essa liberdade não é
eufórica. Ela é sóbria. Carrega luto, mas também clareza. Não elimina o
sofrimento, mas impede a rendição. Ela permite compreender que o Evangelho,
quando vivido até o fim, sempre tensiona alianças; que a política, quando se
afasta da dignidade humana, perde sua razão de ser; e que a fé, quando se
acomoda ao poder, deixa de ser profética.
Padre Júlio, nesse
sentido, torna-se uma figura-limite do nosso tempo. Não porque seja um herói,
mas porque sua existência pública revela a fratura que atravessa a cidade, a
Igreja e a cultura. Ele expõe, com o próprio corpo, a distância entre discurso
e prática, entre ordem e justiça, entre caridade administrada e cuidado
encarnado.
Por isso sua presença
provoca agonia e angústia. Não por excesso, mas por verdade.
E talvez seja
exatamente aí que se esconda uma possibilidade de libertação coletiva. Não a
liberdade confortável de quem vence, mas a liberdade ética de quem atravessa a
noite sem negar a dor, sem ceder ao cinismo e aos canalhas, sem abandonar os
que ficaram à margem.
Uma liberdade que não
se funda na vitória, mas na fidelidade.
Uma liberdade que não
nasce da negação do sofrimento, mas da recusa em permitir que ele nos
desumanize.
Em tempos como estes,
talvez isso seja o máximo que podemos chamar, com honestidade, de liberdade.
Sigamos!

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