Entre o Crime e o Estado: o Humano como Fronteira da Segurança Pública
“Não há paz onde o humano é usado como instrumento — seja pelo crime, seja pelo Estado.”
A
defesa da vida exige que sejamos capazes de distinguir combate de vingança.
Combater o crime organizado é enfrentar uma estrutura complexa, econômica,
política e territorial que se alimenta da ausência do Estado — não de sua
presença violenta. O crime floresce onde a política fracassa, onde a educação
cede lugar ao abandono e a esperança é substituída pela sobrevivência. Nenhum
tiro é capaz de corrigir isso.
A
política de segurança, no Brasil, não amadureceu. Continua sendo conduzida como
se a sociedade fosse um campo de guerra. As forças policiais, majoritariamente
compostas por homens e mulheres oriundos das mesmas classes que morrem nas
favelas, são lançadas em operações que os transformam em instrumentos
descartáveis de uma lógica de poder que não se renova. A cada operação, o
Estado mata — e também morre um pouco.
Enquanto
o crime se reorganiza com inteligência, tecnologia e controle territorial, o
Estado reage com improviso, retórica e força bruta. A racionalidade da
criminalidade é sistêmica; a do poder público, episódica. A primeira aprendeu a
agir no tempo — a segunda continua prisioneira do instante. O crime cria
vínculos, ainda que perversos; o Estado rompe os seus, ao não dialogar com a
comunidade que deveria proteger.
Não é possível combater o crime sem compreender as raízes que o sustentam. Há uma economia subterrânea que nasce da desigualdade, um poder simbólico que se alimenta da ausência de futuro, e uma teologia distorcida que transforma o medo em fé. A guerra contra o tráfico é também uma guerra contra o espelho: o reflexo de um país que insiste em tratar sua própria ferida com mais ferimento. O Estado brasileiro ainda não compreendeu que segurança não é coerção: é convivência. Que a defesa social é mais do que repressão: é mediação, presença, cuidado, política pública e tempo. O crime se alimenta da pressa e do desespero; a justiça, da paciência e do trabalho. Combater o crime organizado exige inteligência, prevenção, confiança e, sobretudo, uma ética que reconheça que nenhum cidadão — culpado ou inocente — perde o direito à humanidade.
É
possível, sim, ser firme sem ser cruel; ser justo sem ser violento. Um Estado
verdadeiramente forte é aquele que reconhece a fragilidade da vida como
sua razão de existir. O crime destrói o humano; o Estado não pode destruí-lo em
nome de combatê-lo.
Se
o país quiser romper o ciclo de violência, terá de reeducar a si mesmo:
redefinir o que entende por poder, por justiça e por vitória. Vencer o crime
não é eliminar corpos — é restaurar o sentido de comunidade. É quando a vida
volta a valer mais do que o medo que uma nação se torna, enfim, segura.

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