Militância Viva e Palavra Habitável


A Palavra como Casa: a
 palavra não é apenas um instrumento. Ela é morada. Ela é gesto, corpo, mundo. Ao habitá-la, também somos por ela habitados. E se há palavras que nasceram para o domínio, há também aquelas que podem ser retomadas, rebatizadas, reencantadas. Este manifesto nasce do desejo de não abandonar o verbo, mas de reexistir dentro dele — transformando-o, cultivando-o, fecundando-o com vida.

Aqui não rejeitamos o verbo militar, mas o repovoamos. Porque sabemos que há um "miles" que mata, mas há também aquele que vive — e até morre — para que outros possam viver. O militante do ser.

Este é um manifesto em três movimentos: denúncia, reinvenção, reencarnação.

I. Entre o Grito e o Espetáculo: A Arte diante da Violência

“Eles combinaram de nos matar, mas a gente combinou de não morrer.” — Conceição Evaristo

A violência habita a vida, mas transborda no humano. De instinto de sobrevivência, torna-se sistema de dominação. E a arte, espelho do mundo, pode tanto escancarar a ferida quanto ocultá-la sob brilho estético.

Há a arte que denuncia — que grita, lembra, sacode. E há a arte que naturaliza — que torna aceitável o horror, que estiliza a dor. Entre essas duas, existe um campo de disputa simbólica.

Educar o olhar, formar o escutar, politizar o sensível — eis o que pode nos salvar. Para que não confundamos bala com beleza, opressão com ordem, morte com entretenimento.

II. Manifesto da Militância Viva

Não milito para matar.
Não milito por conquista.
Não milito por medalhas.

Milito por amor.
Por justiça que ainda não chegou.
Por esperança que insiste em nascer.

Militar, para mim,
é agir com desapego.
É lutar sem ódio.
É avançar mesmo quando a estrada é escura.
É cuidar, mesmo ferido.
É repartir, mesmo com fome.

Militar é fazer da fé um verbo,
e da teimosia, um método.

Não sou soldado de guerra,
sou semeador de mundos.

Milito na arte,
na ciência que salva,
na política que escuta,
na rua que pulsa,
na palavra que cuida.

Sou militante do tempo justo,
do abraço gratuito,
da escuta radical,
da insurgência que não mata.

Milito sem armas.
Milito sem muros.
Milito com mãos abertas.

Porque creio, com tudo o que há em mim,
que a vida vale o risco.

III. Manifesto do Militar do Ser

Não quero militar para ter um lugar.
Quero militar para que todos tenham onde morar.

Não quero militar para mandar em ninguém.
Quero militar para que ninguém mande mais.

Milito com o corpo inteiro.
Milito com palavras que não matam.
Milito com a carne que se faz verbo,
e com o verbo que se faz pão.

Sou militante do ser.
Não sou dono da causa, sou parte do povo.
Não temo morrer — temo viver sem propósito.
E por isso sigo,
mesmo sem armas, mesmo sem garantias,
porque a esperança é mais teimosa que a bala.

IV. Nossos Ancestrais, Nossos Ecos, Nossos Pilares

Jesus de Nazaré

Profeta da margem, gesto radical de amor encarnado. Sua militância não armada fundou uma ética da entrega: "Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos." Militante do ser por excelência.

Nasceu fora das muralhas, viveu entre os deserdados, morreu como criminoso do Império. Mas o gesto que o moveu foi mais potente que qualquer espada: amor encarnado, amor que se dá.

Não buscou tronos nem púlpitos. Tocou leprosos, conversou com prostitutas, provocou mestres da lei, lavou os pés de seus companheiros. Sua arma: a palavra. Seu campo de batalha: o coração humano. Sua vitória: a ressurreição da esperança.

“Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça”, dizia. Porque a justiça, para ele, era mais que legalidade: era compaixão ativa, reconciliação histórica, ternura insurgente.

Jesus não apenas falou de Deus. Foi, no corpo e na história, o escândalo de Deus entre os homens. Não um deus distante, mas um que chora, sangra, caminha ao lado.

A sua cruz, longe de ser símbolo de derrota, tornou-se sinal da entrega mais radical: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos.” E deu.

Hoje, entre as quebradas, nas favelas, nos presídios e nos becos da existência, ainda ecoa sua presença: profeta da margem, militante do ser, rosto visível de um amor que insiste em nascer onde o mundo diz não.

 

Dom Helder Câmara

Chamado de "bispo das favelas", militou com mansidão e firmeza por justiça social. Rejeitou o ódio e combateu a violência com a poesia da paz e a ação concreta do Evangelho. Foi profeta do impossível e servo da esperança.

Militou com mansidão e firmeza por justiça social, fazendo da sua batina um manto de luta.
Rejeitou o ódio, desarmou a vingança e combateu a violência com a poesia da paz e a ação concreta do Evangelho.

Com voz serena, denunciou os poderes que matam e anunciou os sonhos que libertam.
Foi pequeno de estatura e imenso de espírito — presença que ainda pulsa nos becos e altares.

Paulo Freire

Educador da esperança. Criador do verbo que emancipa. Nos ensinou que nomear o mundo é o primeiro ato de libertação. Militante do diálogo, da escuta, da transformação.

Conceição Evaristo

Poeta da escrevivência. Sua escrita nasce do corpo e da dor, mas vira verbo de resistência. Nos ensinou que a palavra também pode ser herança e flecha.

Rosa Luxemburgo

Militante da revolução sem medo. Lutou por justiça e liberdade com a delicadeza de quem amava flores. Sua morte foi martírio, sua vida foi verbo.

Angela Davis

Intelectual e militante contra prisões, racismo e dominação. Uma das vozes mais vivas da luta por liberdade, que une teoria e prática sem concessões.

Marielle Franco

Voz negra, favelada e insurgente que ecoa ainda. Militante do cotidiano e das estruturas. Sua vida foi denúncia e sua morte, convocação.

Dandara e Zumbi dos Palmares

Líderes de uma luta ancestral pela liberdade dos corpos negros. Militância de ferro e fé, de fuga e de enfrentamento, de quilombo e de futuro.

Frida Kahlo

Pintora da dor e da liberdade. Militante de si, do corpo, do feminino profundo. Sua arte é carne, política e permanência.

Augusto Boal

Criador do Teatro do Oprimido. Devolveu ao povo o palco, o corpo, a voz. Militante da ação simbólica, onde a arte é ensaio para a libertação.

Carolina Maria de Jesus

Catadora de papel, escritora do povo. Fez da miséria literatura, da fome palavra. Militante da sobrevivência escrita.

Rubem Alves

Teólogo da esperança e do encantamento. Militante da imaginação, da educação que liberta, da fé que acolhe em vez de condenar.

Simone Weil

Pensadora da atenção radical. Militante da justiça silenciosa. Viveu entre o trabalho e a contemplação. Morreu para ser inteira.

Cornelius Castoriadis

Filósofo da autonomia. Militante do inacabamento criador do ser social. Lembrou que as instituições também precisam ser reinventadas.

Jacques Derrida

Desconstrutor do óbvio. Militante do entre. Fez da linguagem campo de disputa e da palavra um lugar de ressonância política.

Manoel de Barros

Poeta das sobras. Militante da delicadeza. Fez do menor um milagre. Sua palavra militava sem gritar — apenas sussurrava revoluções.

Slam das Minas / Poetas da Periferia

Coletivos de palavra insurgente. Militância viva da oralidade. Militantes do agora, da dor que canta, da voz que ecoa onde antes havia silêncio.

Epílogo — A Palavra como Rito

Esta escrita é uma escrevivência à flor do gesto. Não é tese. Não é performance. É travessia. É casa e fogueira. É memória e invenção.

Aqui, a palavra foi reocupada.
Aqui, o verbo foi refeito.
Aqui, o militar foi desarmado e devolvido à vida.

Que este manifesto circule como semente.
Que seja lido como oração laica, como ensaio amoroso, como convite à escuta.

Militemos — no ser. No cuidar. No criar.

Tem Luta!

Sigamos!!


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