Uniformes, Equidade e Outros Mitos: quando a política pública veste a fantasia da justiça


Em tempos de orçamento apertado, desigualdades escancaradas e escolas públicas desafiadas por múltiplas urgências, a aquisição de uniformes escolares parece um gesto simples e nobre: vestir os estudantes, padronizar a aparência, garantir equidade. Mas será mesmo?

Em Mogi das Cruzes, a novela dos uniformes escolares se tornou símbolo de algo mais profundo — e mais perigoso: o uso de mitos modernos para maquiar decisões políticas e esconder desigualdades históricas sob o véu da “técnica” e da “eficiência”.

No final de 2024, ainda sob a gestão anterior, foi lançado um edital de quase R$ 100 milhões para aquisição de kits de uniforme para estudantes da rede municipal. O número de kits previstos superava em mais de duas vezes o número real de alunos matriculados. O Tribunal de Contas interveio, suspendeu o processo e apontou a falta de planejamento, risco ao erário e ausência de justificativas técnicas. Era o primeiro ato de um roteiro marcado pela nebulosidade.

Veio 2025 e, com ele, um novo edital. Reformulado, mais barato, tecnicamente mais robusto. A nova gestão fez o que parecia ser o certo: revisou o planejamento, reduziu os custos para cerca de R$ 25 milhões, atualizou normas e incluiu, no termo de referência, uma bela justificativa pedagógica: o uniforme ajudaria a promover a equidade, o pertencimento e o respeito mútuo. Até aí, tudo bem. Mas a história não terminou aí.

Poucos dias antes da abertura da licitação, a Secretaria de Educação suspendeu o processo — desta vez sem explicação técnica, parecer jurídico ou nota pública. A justificativa? “Necessidades administrativas”. E o silêncio voltou a reinar, como se a decisão de suspender um processo que impacta diretamente mais de 50 mil alunos não merecessem ser explicada à sociedade.

É nesse ponto que os mitos modernos entram em cena.

O filósofo Roland Barthes nos alertou, décadas atrás, que os mitos modernos são falas que fingem ser naturais. Eles transformam decisões históricas e políticas em senso comum, como se fossem verdades óbvias, neutras, técnicas. O mito não mente — ele esvazia. Despolitiza.

O uniforme escolar, nesse caso, vira símbolo de uma suposta equidade. Mas não há igualdade no tecido. Há diferença disfarçada. A criança vestida igual continua morando em bairros desiguais, acessando escolas com estruturas precárias, enfrentando fome, insegurança e abandono. O uniforme pode até apagar a diferença estética, mas não elimina a desigualdade real. Ele veste o mito.

Da mesma forma, o discurso da “boa gestão” se apoia na ideia de que basta eficiência para que tudo funcione. Reduzir o custo do edital virou prova de virtude administrativa, como se a boa intenção resolvesse os problemas de uma política pública sem diálogo, sem transparência e sem controle social. O mito da gestão salvadora substitui a necessidade de participação cidadã por decisões tomadas nos bastidores, sob o manto da burocracia.

E por fim, o mito mais perigoso de todos: o da neutralidade técnica. A suspensão do processo foi justificada como “necessidade administrativa”. Como se fosse uma questão de fluxo interno, e não uma decisão com impacto direto na vida de milhares de estudantes. A linguagem fria e impessoal serve para esconder o conflito, proteger os interesses e desarmar a crítica.

Enquanto isso, mães seguem comprando camisetas no braço do salário mínimo. Crianças continuam indo à escola com roupas inadequadas ao frio ou ao calor. E a “equidade” prometida vira retórica de edital.

É preciso tirar a fantasia da política pública. A crítica não é ao uniforme em si, mas à lógica que o transforma em fetiche. O uniforme pode ser um instrumento — mas jamais será a solução. Equidade não se costura com tecido. Se constrói com justiça, participação e transparência.

Mitos não devem governar políticas públicas. E a sociedade não pode ser espectadora de processos que afetam a dignidade das crianças. Que a próxima licitação venha com menos fantasia e mais democracia


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