Os limites do tempo vivido: por que civilizações inteiras deixam de existir?


A vida humana só é possível em comunidade em relação com a natureza e com o outro.

Vivemos um tempo-limite. Um tempo em que a espessura que dá substância a história se comprime em bytes, e a existência humana tem a oportunidade de se equilibrar entre telescópios que decifram galáxias e algoritmos que decidem o preço do pão.

Nesse tempo, perguntamo-nos: por que tantas civilizações morreram? O que permanece? E o que em nós nos sabota, impedindo uma evolução que dure mais do que um suspiro no tempo profundo?

Esta série de sonetos nasce como tentativa poética de uma vivência teimosa de atravessar essa pergunta. Em vez de propor respostas definitivas, os versos tentam habitar a dúvida, convocar o espanto e escutar o sussurro do que insiste em viver.

A poesia aqui é porto e passagem. Caminho que acolhe a reflexão antes do manifesto, a escuta antes da teoria, o grito antes da marcha. Que esta leitura seja um rito de reencontro com aquilo que pode, enfim, reencantar o mundo.

 

O Espanto e a Fronteira

No limiar do tempo em que habitamos,
  a luz cintila em telas e buracos.
  Voamos, mas não mais nos escutamos —
  cortamos céus, mas trilhamos atalhos.

Avança a mão, o código, a partícula,
  mas sangra a terra, o ventre, a criança.
  Colhemos luz da estrela mais ridícula,
  e perdemos da vida a esperança.

Por que razão, com tanto, ainda tombamos?
  Em que abismo do ser nos enredamos?
  Será que o fim germina em nossa ação?

Se o espírito for o que sustenta,
  talvez renasça em nós a força lenta
  de sermos tempo, corpo e comunhão.

A Terra e os Seus Fantasmas

Ouço os passos de povos esquecidos,
  que ergueram templos, rios, cosmogonias.
  Homens e mães de sonhos desmedidos,
  cujo saber se perdeu nas ventanias.

Não há vestígio em pedra ou pergaminho
  que nos conte o que foram, o que viram.
  Mas sinto, ao pisar o chão sozinho,
  que os vivos de outrora ainda respiram.

Quantas cidades morreram em silêncio?
  Quantas palavras sumiram no vazio?
  Quantos amores se foram sem memória?

Se há mais mortos que vivos no caminho,
  talvez reste escutar o seu assombro frio
  e colher do esquecimento sua história.

Eros, Tânatos e o Fio da História

Dentro de nós um pacto se enraíza:
  Eros acende a chama que aproxima,
  mas Tânatos, com sede de ruína,
  retorce o tempo e faz da dor divisa.

De um lado o gesto que acolhe e humaniza,
  de outro o aço que fere e se aproxima.
  Num sopro amamos, no outro já há rima
  para a tragédia que se eterniza.

É luta antiga — no íntimo e no império —
  o mundo dança à beira do mistério
  entre criar o fogo ou o abismo.

Mas se o amor for mais que impulso ou mito,
  talvez possamos, por dentro do conflito,
  tecer civilizações com outro ritmo.

A Técnica e o Desvínculo

Criamos luz que ofusca a própria face,
  erguemos pontes sem saber pra onde.
  O mundo gira, mas ninguém o abraça —
  a máquina avança e já não responde.

Da pedra ao chip, da enxada ao foguete,
  fizemos tudo… mas esquecemos "por quê?"
  A técnica, agora, é quem nos repete:
  produz, consome, exclui, sem mais porquê.

E o humano, encantado com seu engenho,
  se vê perdido em meio ao que criou —
  o artífice caiu no próprio desenho.

Falta o sentido, falta o chão, o fio.
  Se a vida não se liga ao que se tem,
  resta só ruído em cada novo dia.

O Espírito e a Cidade

A cidade é o corpo do espírito vivo,
  tecido em praça, canto, rito e gesto.
  Se pulsa o bem comum, torna-se abrigo;
  se dorme a alma, o brilho vira resto.

Há catedrais sem fé, ruas sem passo,
  muros que gritam mais do que os humanos.
  No aço e vidro, o mundo vira espaço —
  mas falta o tempo que nos torne irmãs, irmãos.

O que sustenta a casa é sua escuta:
  um chão que sabe o nome de quem pisa,
  um teto que não pesa, mas escuta.

Quando o espírito some ou se desliza,
  a cidade persiste — mas é vazia,
  pois sem presença, tudo se desfez em luta.

A Semente e a Morte das Civilizações

Por que caíram tantas, tão grandiosas?
  Com seus altares, leis, bandeiras, mitos?
  Por que se apagam cúpulas formosas,
  deixando em pó seus sonhos infinitos?

Não foi o tempo só, nem os invasores —
  foi a raiz cortada em seu jardim.
  Morre a cidade onde morrem seus amores,
  e o poder, sem ternura, é só um fim.

Mas sob as ruínas há o que resiste:
  memórias que a pedra ainda abriga,
  saberes que o vento nunca despiste.

Quem escuta os fantasmas, não castiga —
  acolhe em si a dor que persiste
  e planta o novo com mão antiga.

Manifesto do Reencantamento

Basta de pedra sem alma, de aço cego.
  É tempo de lembrar o que nos move:
  não há progresso se o ventre fica entregue,
  nem há saber se o amor não nos remove.

Ergamos o que cura e que partilha,
  que dança o chão e escuta a travessia.
  A vida é mais que cálculo ou planilha —
  é flor, é fome, é fogo, é poesia.

Que o gesto reencontre o seu sentido.
  Que o tempo seja tempo de presença.
  Que o mundo volte a ser um chão querido.

Se há revolução, que ela comece
  no modo como um corpo se oferece
  ao outro — inteiro, sem pedir licença.

O Tempo que Vem

O tempo que virá não está distante —
  ele respira agora, entre os espaços.
  Não nasce do relógio, mas do instante
  em que um olhar repousa sobre os passos.

Não pede reis, nem armas, nem milagre,
  mas mãos comuns, tecendo o cotidiano.
  É tempo de romper o velho alarde
  e semear o mundo mais humano.

Talvez não seja novo — seja antigo,
  o tempo que nos volta ao que é essência:
  cuidar da terra, erguer abrigo e abrigo.

Se há futuro, ele começa na presença,
  na escuta que transforma em abrigo
  o grito mais esquecido da existência.


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