Nosso Cotidiano: entre trens lotados, corpos exaustos e a esperança que resiste
Um jovem acorda cedo na periferia. Ainda está escuro. Toma um café rápido, após um banho com a água que chega em sua casa pelos canos instalados com dinheiro público — obra coletiva agora praticamente doada, via concessão, ao acúmulo de alguns milionários.
Sai de casa em direção
à estação. Vai trabalhar. Mais tarde ainda tentará chegar à faculdade. No
caminho, encontra pessoas dormindo nas calçadas, crianças pedindo nos faróis,
viaturas abordando com brutalidade outros jovens como ele — corpos racializados,
periféricos, cansados. O trem vem lotado. A esperança tenta se equilibrar entre
os empurrões e o sono acumulado.
Este lugar não é Londres no século XIX. É Suzano, Mogi das Cruzes, Itaquaquecetuba, Ferraz de Vasconcelos. É o Alto Tietê. É o Brasil real.
A crítica como herança
e método
Mas não é só no trem lotado ou na fila do ônibus que a desigualdade se revela. Em cada farol das grandes avenidas, ela estampa os rostos de crianças que carregam balas, panos, flores e esperanças — em busca de algum trocado, de um gesto de humanidade, ou apenas de sobrevivência. Não é preciso cruzar o oceano para encontrar o proletariado em sua forma mais crua: ele está aqui, na esquina da Campos Sales com Marques Figueira, como relatado em uma crônica recente, onde meninos vendem balas e limpam para-brisas enquanto aprendem, na prática, que a vida cobra caro de quem nasce do lado de cá.
Essas crianças não frequentam cursos de liderança, mas aprendem a negociar, improvisar, sobreviver — cedo demais. Vivem em um sistema que lhes nega infância e os empurra para a linha de frente da luta por dignidade. Uma luta silenciosa, mas cotidiana. Não são apenas vítimas: são sujeitos forjados na urgência, protagonistas de uma história que a sociedade insiste em ignorar.
No século XIX, Marx
também via a brutalidade da vida urbana em seu tempo. Mas se estivesse vivo
hoje, encontraria elementos ainda mais perversos: uma desigualdade
naturalizada, a vida precarizada vendida como empreendedorismo, a fome
disfarçada de escolha. O sistema mudou de pele, mas manteve o mesmo vício:
transformar tudo — inclusive as vidas humanas — em mercadoria.
Ao escrever que a história das sociedades é a história da luta de classes, Marx não descrevia o passado, mas antecipava o presente. Sua crítica segue viva porque seu método — a análise das relações materiais de poder — continua fundamental para entendermos a engrenagem do mundo em que vivemos.
É preciso reinterpretar
Marx, não o abandonar
Marx não conheceu os
aplicativos de entrega nem os fundos de investimento que compram água, escolas
e florestas. Mas ele nos deixou um farol: a crítica da economia política. Com
ela, ainda podemos desvendar as novas formas de exploração e controle que marcam
o capitalismo atual.
Mais do que repetir fórmulas, precisamos cruzar sua herança com os saberes populares, com os sonhos das juventudes negras e periféricas, com as lutas das mulheres e dos povos originários. Precisamos de um Marx que ande de trem com a gente, que entre nas escolas públicas, nas ocupações, nas quebradas.
Por um marxismo
sensível, popular e reencantado
O jovem trabalhador do
trem lotado não é uma exceção. É a regra cruel de um sistema que esmaga vidas e
multiplica lucros. Mas também é a semente de outro mundo possível. Porque ainda
há quem sonhe, quem lute, quem organize a resistência.
Por isso seguimos —
entre trens e esperanças — afirmando que a luta de classes não é coisa do
passado. Ela está viva. E passa aqui, todos os dias, entre Suzano, Mogi,
Itaquá, Ferraz, Poá.
Referências
bibliográficas comentadas
- Karl Marx & Friedrich Engels
(1848) – Manifesto do Partido
Comunista
Documento político fundacional. Apresenta a luta de classes como eixo da história social. - Karl Marx (1859)
– Contribuição à Crítica da Economia Política
Fundamenta o método do materialismo histórico. - György Lukács (1923)
– História e Consciência de Classe
Atualiza a dialética marxista com ênfase na consciência política. - István Mészáros (2002)
– Para além do capital
Reinterpretação contemporânea da crítica marxiana à luz da crise estrutural do capital. - David Harvey (2014)
– O enigma do capital e as crises do capitalismo
Explica o funcionamento cíclico e predatório do capital no século XXI. - Pierre Dardot & Christian Laval
(2017) – A nova razão do mundo
Estudo sobre como o neoliberalismo se tornou uma racionalidade totalizante. - Ailton Krenak (2019)
– Ideias para adiar o fim do mundo
Convite à ruptura com o paradigma civilizacional destrutivo da modernidade. - Silvia Federici (2004)
– Calibã e a bruxa
Interpretação feminista e marxista sobre a acumulação primitiva e o patriarcado. - Angela Davis (1981)
– Mulher, raça e classe
Conecta as opressões de gênero, classe e raça em perspectiva histórica e revolucionária - CartaCapital (2024). A vida ensina. Crônica publicada em 15 de abril de 2024, trazendo o cotidiano de crianças que trabalham nos faróis de São Paulo e o contraste com a infância protegida da classe média. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-vida-ensina-4816/
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