CARTA ABERTA – 19 DE ABRIL: O TEMPO DOS POVOS ORIGINÁRIOS E A PARTIDA DE FRANCISCO


Quando éramos crianças, aprendíamos na escola que o dia 19 de abril era o "dia do índio". As semanas que antecediam a data eram preenchidas por desenhos em cartolina, cocares de papel, textos ditados e festas ensaiadas. Com mãos infantis, tentávamos reproduzir aquilo que os livros didáticos nos diziam ser a cultura indígena. Havia nesse gesto algo de bonito, uma tentativa de aproximação — mas também uma ausência profunda: a ausência de escuta real, de respeito à diversidade, de reconhecimento da presença viva dos povos originários em nosso país e no mundo. Como tantos de nós, fomos ensinados a ver o indígena como passado, como figura folclórica, como personagem que já não habita o agora.

Mas os povos originários estão vivos. Estão nos rios, nas matas, nas periferias, nas aldeias urbanas e rurais. Estão nos rituais e nos corpos, nas línguas que resistem ao silêncio forçado, nas técnicas de cuidado com a terra que salvam a vida e desafiam o lucro. Estão nos saberes que atravessam milênios e que sustentam, em silêncio e coragem, a possibilidade de um outro mundo. São quase 200 línguas faladas em nosso território. São centenas de povos e modos de existir que nos ensinam que a terra não é mercadoria, que a floresta tem espírito, que o tempo não é relógio, que viver é partilha.

É nesse 19 de abril que recebemos, com dor e reverência, a notícia da morte de Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco. Filho de imigrantes italianos e ferroviário, como tantos trabalhadores e trabalhadoras de nosso povo, Francisco escolheu um nome que carrega a simplicidade, a escuta, a ternura e a justiça: Francisco de Assis, o santo dos pobres e da criação. Mas Francisco não apenas escolheu um nome. Ele escolheu um caminho. Caminhou com os descartados, escutou os clamores da terra, ergueu sua voz em defesa dos povos originários da Amazônia e do mundo. Nenhum outro pontífice olhou com tamanha atenção, cuidado e compromisso para as comunidades indígenas. Ele compreendia que nelas habita a possibilidade de reencantar o planeta.

Na exortação apostólica Querida Amazônia, Francisco escreveu com amor e com indignação. Rejeitou o extrativismo destrutivo, denunciou o genocídio cultural e espiritual, e convocou a Igreja — e todos os povos — a proteger os guardiões da floresta. “Eles são os melhores cuidadores dos territórios”, escreveu. E ainda mais: pediu que a Igreja aprenda com os povos originários, com sua espiritualidade, sua mística, seu jeito de celebrar a vida. Em um mundo adoecido pelo lucro e pelo individualismo, Francisco reconheceu nos povos indígenas uma medicina para a alma coletiva da humanidade.


Por isso, neste 19 de abril, não comemoramos — honramos. Honramos a vida dos povos originários que resistem. Honramos seus mestres, seus cantos, suas línguas, seus territórios. Honramos suas dores e seus sonhos. E honramos a vida e a partida de Francisco como parte dessa mesma travessia. Porque a defesa dos povos indígenas não é causa de um povo só: é luta pela humanidade inteira.

Que este dia seja refeito, reconduzido, ressignificado. Não como um marco vazio em calendários escolares, mas como um chamado ao reencontro com as raízes que sustentam a vida. Que possamos transformar nossas práticas, nossas políticas e nossas palavras em pontes de respeito, de escuta e de reparação histórica. E que, à memória de Francisco, possamos responder com o compromisso de seguir. Seguir com os pés na terra, com a voz dos que vieram antes, e com o coração aberto à construção de um mundo que possa finalmente ser casa comum.

Tem luta!!

Sigamos!!

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