O fetiche do rombo e a liturgia da culpa
Há notícias que não informam — consagram. A manchete da CNN sobre o “rombo histórico das estatais” é uma dessas peças raras em que o jornalismo de dados se traveste de sermão. Números, percentuais e gráficos aparecem como relíquias de fé, exibidos para confirmar o dogma de que o mercado é a medida do real. O Estado, reduzido a corpo pecador, deve purgar seus gastos até reencontrar a graça fiscal.
O leitor é
convidado a se ajoelhar diante de um altar contábil. O déficit vira pecado, e o
ajuste, penitência. Nenhuma contextualização histórica ou estrutural — como o
impacto internacional do preço do petróleo, das guerras ou da política de juros
— é oferecida. O dado é absoluto, o número fala por si, o veredito já está
dado. A ciência deixa de ser investigação e se transforma em oráculo.
Por trás da
linguagem técnica esconde-se uma moral antiga: a crença de que governar bem é
gastar pouco, e que investir no social é ceder à tentação. O discurso do
“rombo” não é neutro; é narrativa de poder. Ao culpar o governo e personalizar
o déficit, transfere-se ao presidente a responsabilidade cósmica de um sistema
que o antecede. O desequilíbrio das contas vira metáfora de desordem moral — e
o mercado, tribunal supremo.
O curioso é
que, na imagem escolhida, Lula aparece sozinho, em gesto de introspecção. Luz
fria, fundo neutro, expressão grave. O enquadramento é de penitência, não de
explicação. O rosto do governante torna-se símbolo do erro, a estética da crise
substitui o debate. O retrato é a prova — o olhar bastando à condenação.
Essa operação
simbólica não é nova: a mídia financeira há décadas cumpre o papel de
catequista do neoliberalismo. Ela traduz a economia em linguagem religiosa: o
déficit é heresia, o corte é sacrifício, o superávit é salvação. Não há menção
a vidas, empregos ou políticas públicas — apenas almas fiscais a serem
redimidas.
Enquanto isso,
o verdadeiro rombo, o invisível, continua aberto: o da imaginação pública. A
sociedade perde a capacidade de pensar o Estado para além da planilha, de
enxergar nas empresas públicas não um peso, mas uma possibilidade de futuro. Ao
confundir lucro com virtude, transforma-se a política em contabilidade e o
cidadão em acionista da própria resignação.
A boa gestão de
um país não se mede por dividendos, mas por dignidade. E dignidade não se
calcula: se constrói.
Talvez o rombo
de que devêssemos falar seja outro — o buraco crescente entre o que é contado e
o que é vivido, entre o número que brilha e o corpo que trabalha. E esse,
nenhum balanço fecha.
Geometria dos Saberes aplicada à notícia,
tomando como base conceitual o livro A Geometria dos Saberes..
Ensaio
crítico interpretativo
“O fetiche
do rombo e a liturgia da culpa”
“Quando o
número se ergue como dogma, a realidade se ajoelha.” — A Geometria dos
Saberes
A reportagem da
CNN Brasil apresenta-se como análise econômica, mas opera como narrativa moral
sobre o Estado e o governo. À luz da Geometria dos Saberes, ela revela
um pentágono invertido: a ciência cede ao dogma técnico, a filosofia se
converte em justificativa de mercado, a arte é usada para dramatizar o déficit,
a política se reduz à acusação, e a ética se dissolve em culpa contábil.
1. O saber
científico — o dado como dogma
A notícia
mobiliza percentuais e nomes de consultorias para legitimar o veredito de
“rombo histórico”. Nenhum dado, porém, é historicizado: ignora-se o ciclo de
investimentos, o cenário internacional e os efeitos de guerras e taxas de juros
globais. A ciência, em vez de explicar, sanciona. O número não é meio de
compreensão, mas selo de autoridade.
2. O saber
filosófico — a metafísica da eficiência
O texto repete
a antiga crença cartesiana no mercado como razão pura. “Rombo” torna-se
metáfora do mal e “ajuste” metáfora da redenção. A filosofia subjacente é a da
culpa econômica: todo gasto social é desvio moral. Falta-lhe a pergunta ética —
para quem o equilíbrio fiscal serve?
3. O saber
artístico — a estética do alarmismo
A fotografia de
Lula, em close dramático, constrói a figura do líder contrito diante de sua
própria falha. O layout branco-azulado e a ausência de contexto visual reforçam
a frieza tecnocrática. A matéria compõe um quadro de penitência política: o
retrato substitui a análise.
4. O saber
político — a hegemonia pelo déficit
Ao personalizar
a responsabilidade pelo resultado contábil, o texto desloca o debate estrutural
sobre o papel das estatais. Ignora-se que o rombo pode ser expressão de
investimento, não de corrupção. O discurso do mercado torna-se tribunal; a
política, ré. É a mesma “teologia da eficiência” que o método identifica como
mecanismo de domínio simbólico.
5. O saber
espiritual — a fé na austeridade
Por baixo da
linguagem econômica pulsa uma moral religiosa: quem gasta “peca”, quem corta
“se purifica”. A fé no déficit zero substitui a ideia de bem-comum. A ética,
amputada de solidariedade, confunde prudência com redenção.
6. Síntese
geométrica — o centro deslocado
A figura
resultante é um pentágono assimétrico: a ciência e a política foram
sequestradas pela lógica financeira, a arte reduzida a drama ilustrativo, a
filosofia a dogma, a espiritualidade a moral da conta. O centro humano — o
sujeito que vive as consequências — desaparece. O método propõe restaurá-lo:
recolocar o cidadão e o contexto histórico no centro do discurso.
7. Conclusão
— o direito de interpretar
Analisar a
notícia pela Geometria dos Saberes é recuperar o direito de ler criticamente. A
reportagem não é mentira; é forma. E toda forma revela uma escolha de olhar.
Quando a mídia apresenta o rombo como verdade absoluta, ela realiza um ato de
poder simbólico. O rombo maior, porém, é o da imaginação pública — a
incapacidade de pensar o Estado para além do balanço.
Reintegrar
ciência, filosofia, arte, política e ética é restituir à economia seu sentido
humano: a vida como bem comum, não como planilha.
Matriz 5×5
da Geometria dos Saberes aplicada à notícia “O que explica o rombo histórico
das estatais no governo Lula” (CNN Brasil)
|
Pergunta
\ Vértice |
CIÊNCIA (fato, dado, indicador) |
FILOSOFIA (conceito,
sentido) |
ARTE (imagem,
linguagem) |
POLÍTICA (poder,
disputa) |
ESPIRITUALIDADE
/ ÉTICA (valor, verdade) |
|
O
que é dito? |
Que
as estatais brasileiras registraram prejuízo “histórico” sob o governo Lula,
segundo dados do BC e Fontes de mercado. |
Supõe
que eficiência econômica = virtude e que lucro é o critério da boa gestão. |
Foto
de Lula em gesto introspectivo, luz suave e moldura de seriedade: o rosto
torna-se emblema da crise. |
Reforça
o enquadramento de responsabilidade pessoal do presidente. |
Sugere
uma falta moral na condução política — a “culpa” de governar com ideologia e
não com razão. |
|
De
onde fala? |
De
consultorias financeiras e economistas de mercado (XP, Acabarbaco, etc.),
tratados como fontes neutras. |
Da
razão neoliberal que naturaliza o mercado como árbitro da realidade. |
Discurso
jornalístico limpo, layout empresarial, cores frias. |
Do
campo da oposição simbólica à intervenção estatal. |
De
uma fé implícita na mão invisível como ordem moral. |
|
Como
diz? |
Usa
números, comparações, porcentagens — mas sem historicidade. |
Emprega
causalidade linear: gasto →
rombo → culpa. |
Ritmo
narrativo de tragédia econômica; metáforas de “buraco”, “rombo”,
“descontrole”. |
Articula
vozes técnicas que reforçam narrativa de incompetência política. |
Moraliza
a gestão: o déficit vira pecado contra a prudência. |
|
Para
que diz? |
Para
convencer o leitor de que o mercado é o único juiz legítimo da eficiência. |
Para
reinstalar o paradigma da tecnocracia como verdade. |
Para
criar imagem emocional de ameaça e instabilidade. |
Para
deslegitimar a agenda desenvolvimentista e redistributiva. |
Para
restaurar fé pública no mercado como caminho de redenção econômica. |
|
Quem
fala? |
Voz
institucional da mídia financeira mediada por especialistas. |
O
sujeito enunciador é o técnico-sacerdote da racionalidade econômica. |
O
jornalista-narrador ocupa o papel de intérprete moral do caos. |
A
mídia atua como ator político que arbitra o discurso sobre gestão. |
O
“santo” é o equilíbrio fiscal; o “pecador”, o Estado interventor. |
Imagem: Reprodução de matéria
publicada no jornal CNN Money, edição de 20/10/25 às 03:15 | Atualizado 20/10/25
às 04:36
Fonte: CNN Money – reportagem: “O que explica o
rombo histórico das estatais no governo Lula”.
Uso destinado a fins críticos, educativos e de análise de comunicação
pública (art. 46, III, da Lei 9.610/98 – Limitações de
direitos autorais) - Geometria do Saberes - PP Plebeu - um tributo à irreverência.

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