O veneno suave da notícia patrocinada


Há coisas que parecem pequenas, passageiras, quase invisíveis. Uma matéria de jornal, por exemplo. Ninguém se detém muito: lê-se no intervalo do café, comenta-se na rede social, esquece-se depois. Mas, às vezes, nessas pequenas coisas mora o destino de um país.

Foi assim quando li a matéria paga da Bloomberg sobre a Eletrobras. Dizia o texto, em tom solene: “A maior concessionária de energia elétrica da América do Sul se espalha pelo Brasil (...). Assim como o país que ajudou a criar, a Eletrobras deveria ser uma potência econômica.”

Parecia elogio, mas era veneno. Pois não foi a Eletrobras que criou o Brasil — foi o Brasil, por meio do Estado, que criou a Eletrobras em 1962. Ali, no limiar da história, um país ousava afirmar sua soberania, erguer empresas próprias, sonhar com desenvolvimento. E dois anos depois, em 1964, veio o golpe militar patrocinado pelos Estados Unidos, para conter o excesso de ousadia de um povo que queria andar com as próprias pernas.Décadas mais tarde, a cena se repetiria. A Petrobras descobriu o pré-sal, e o governo Dilma ousou dizer: parte dessa riqueza vai financiar educação e saúde. Mais uma vez, a energia foi promessa de emancipação. E, mais uma vez, a promessa não durou: em 2016, o golpe parlamentar cortou o fio da esperança, como tesoura que recorta um bordado inacabado. E agora, em 2022, a Eletrobras foi privatizada. O discurso é sempre o mesmo: o Estado é sombra, atraso, ineficiência. O mercado é luz, progresso, liberdade. E para difundir esse evangelho, não basta o pregador: é preciso vestir a propaganda com roupas de jornalismo. É aí que entra a notícia patrocinada, o chamado native advertising.

A matéria da Bloomberg não trouxe números sobre tarifas, nem dados sobre investimentos, nem avaliação sobre desigualdade de acesso à energia. Trouxe metáforas: “livrar-se da sombra estatal”. Trouxe exemplos de conveniência: Milei na Argentina, a privatização da Sabesp em São Paulo. Trouxe até rostos e frases de executivos da própria Eletrobras, como Eduardo Haiama dizendo que “venderia tudo”. E assim, em meio a frases lapidadas, insinuou que privatizar é destino, que resistir é atraso, que pensar diferente é sombra. Mas, como lembraria Kant, o esclarecimento é a coragem de pensar por si mesmo. E aqui não há esclarecimento, há heteronomia: uma propaganda disfarçada de notícia, guiando o leitor sem que ele perceba. O que parece informação é apenas sugestão; o que parece análise é apenas slogan.

Esse é o veneno suave: entra sem que se perceba, age sem que se sinta, muda a forma de pensar sem dar tempo de refletir. É a ideologia em estado puro, naturalizando o que é histórico, invertendo o que é causalidade, silenciando o que importa. E no entanto, é preciso coragem para interromper o fluxo e dizer: não. A Eletrobras foi criada pelo Brasil, não o contrário. A energia é um bem público, não uma mercadoria qualquer. A soberania não pode ser tratada como sombra, mas como luz que orienta o destino coletivo.

Nos corredores da história, de 1962 a 1964, de 2010 a 2016, de 2022 até hoje, há uma luta constante: energia como soberania ou energia como mercadoria. O native advertising é apenas a ponta visível dessa luta, o verniz ideológico que cobre um projeto mais profundo de dependência e entrega.

Érico Veríssimo gostava de mostrar como o cotidiano esconde as grandes forças da história. Aqui também é assim. Uma notícia breve, lida entre dois goles de café, pode carregar décadas de disputa, golpes, esperanças e derrotas. Por isso precisamos lê-la com olhos atentos, escutar o silêncio que ela carrega, recusar o veneno suave que ela oferece.

Se a filosofia serve para algo, é para nos lembrar que liberdade não é repetir o que nos dizem, mas pensar por nós mesmos. E se a política serve para algo, é para garantir que a energia de um país ilumine não apenas os lares, mas os caminhos de sua própria autonomia.

Tem Luta!

Sigamos!!


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