Graça, humana ou divina: entre a luta e o impossível!


“Se a graça é divina, ótimo.
Ela é abundante e permanente se divino for.
Pois a vida é permanente,
o mundo é permanente,
o universo é também,
pois aqui na Terra tem água, tem ar, tem gente, tem consciência…”

…Mas tem a graça, que pode ser divina,
a graça que pode e deve ser abundante
para ter graça na vida
e construir a consciência,
construir o entendimento — com a graça.”

Pois tudo passa.
A graça permanece.
Pode até ser divina.
Mas humana — sei que é.”

Em que lugar da história habita a graça? Em que corpo ela se encarna? E, mais ainda, como reconhecer sua presença — não como um dom celestial, mas como uma força concreta que atravessa a vida dos povos em luta? Vivemos num tempo em que o mercado sequestra até a linguagem do sagrado, transformando a espiritualidade em produto, o cuidado em algoritmo e o gesto solidário em moeda de troca. Mas mesmo diante da avalanche de coisificação da vida, ainda há algo que escapa. Há algo que insiste. Algo que resiste. Algo que, talvez, possamos chamar de graça — não no sentido religioso tradicional, mas como nome provisório para aquilo que, sendo profundamente humano, ousa ultrapassar as determinações da lógica do capital.

Essa graça humana não é ausência de dor, não é favor divino, nem anestesia subjetiva diante do sofrimento social. Ela nasce no seio da contradição, como gesto insurgente de beleza e dignidade dentro das piores condições objetivas. Ela aparece quando, mesmo exaurida, uma trabalhadora partilha sua comida com alguém mais necessitado. Quando um jovem periférico lê um poema no meio do concreto cinzento de sua quebrada. Quando um corpo negro dança no asfalto onde a polícia lhe apontaria um fuzil. A graça, nesse sentido, não é consolo, mas afirmação: afirmação da vida onde tudo diz que ela deveria ser reduzida a mera sobrevivência. E é justamente essa capacidade de afirmar a vida, mesmo quando ela é negada, que revela a graça como potência histórica, como fresta material por onde a autonomia e a imaginação se reinventam.

A filosofia crítica há muito tempo se pergunta sobre a possibilidade do humano num mundo desumanizado. Paulo Freire respondeu a isso com a pedagogia do oprimido, onde a escuta e o diálogo não são meros métodos, mas expressões de amor político. O amor, para Freire, não é emoção privada: é prática ética de libertação. E aqui reside o eco com a ideia de graça — pois só há graça onde há encontro, onde há escuta verdadeira, onde há tempo para que o outro exista como sujeito. Freire nos ensina que todo gesto de humanização em contextos de opressão é também um ato revolucionário. Nesse horizonte, a graça não é um luxo dos privilegiados, mas o direito ontológico dos que foram historicamente negados. E quando este direito é exercido, mesmo nas bordas, mesmo com fome, mesmo sem garantias, temos aí a irrupção de uma prática que não se curva às determinações da hegemonia. Uma prática que só pode ser entendida como práxis — ou seja, ação consciente e transformadora no mundo.

A tradição revolucionária, por sua vez, não se fez apenas de armas e tratados. Rosa Luxemburgo compreendeu que o povo em movimento carrega não apenas sua miséria, mas sua criatividade, sua vitalidade, sua potência de invenção. Rosa via na espontaneidade das massas algo que ultrapassava os cálculos do partido. Ela intuía, de forma quase poética, que há uma espécie de excesso — uma força excedente — que habita o povo em luta e que se manifesta nos modos de vida que desafiam o conformismo. É nessa vitalidade criadora do povo que identificamos mais uma vez o fio da graça humana: uma espécie de alegria política que resiste mesmo quando tudo falta. Rosa não chamava isso de graça, mas o espírito está lá — quando ela defende que a revolução precisa ser feita com liberdade e sensibilidade, com dureza estratégica, sim, mas sem jamais se tornar máquina de gelo. Porque uma revolução sem beleza, sem sentido e sem humanidade, cedo ou tarde se curva diante da própria lógica que dizia combater.

Fanon, por sua vez, talvez tenha sido quem mais explicitamente tocou a dimensão espiritual da luta sem cair na abstração religiosa. Em Os Condenados da Terra, ele descreve com brutal honestidade a mutilação psíquica provocada pelo colonialismo, e como a luta armada pode funcionar não apenas como meio político, mas como ritual de reconstrução subjetiva. Fanon via no processo revolucionário um campo em que o corpo e a alma podiam, juntos, retomar seu lugar no mundo. Para os povos colonizados, a luta não era apenas por terra ou soberania, mas por dignidade, por voz, por beleza — por graça, enfim. A graça, aqui, é o nome que damos a essa centelha de reumanização que ressurge quando o colonizado olha nos olhos do opressor e já não o reconhece como senhor. Quando uma identidade despedaçada se recompõe não pela nostalgia, mas pela criação. Fanon fala de força espiritual revolucionária, e é impossível não perceber aí o mesmo sopro que nomeamos como graça humana: a capacidade de, mesmo despido de tudo, ainda afirmar-se como sujeito pleno e insurgente.

E então chegamos a Castoriadis, que nos convida a compreender a sociedade como uma criação constante — um fazer coletivo que pode, a qualquer instante, instituir novos mundos. Sua noção de imaginação radical é talvez uma das chaves mais potentes para entender a graça humana como horizonte político. Castoriadis rompe com a ideia de que o mundo social é dado, e nos revela que toda instituição é sempre histórica, mutável, criável. A graça, nesse sentido, é a fagulha dessa imaginação que insiste, mesmo quando tudo parece congelado. É o lampejo de um novo sentido que emerge na comunidade, no coletivo, no gesto simbólico que questiona a normatividade vigente. Não se trata de utopia vaga, mas de criação política enraizada no cotidiano. A graça é quando o povo se torna capaz de instituir a si mesmo. Quando o “nós” se reinventa para além do espelho do capital.

Podemos, então, dizer que a graça humana é uma forma de comunismo sensível: não o modelo estatal ou dogmático, mas a comunhão de sentido, de afeto, de coragem que brota quando se rompe com a lógica da escassez do amor, da solidariedade, da criação. A graça é o comum insurgente. É a política do impossível real. É a parte de nós que o capital não conseguiu capturar, embora tente todos os dias.

Por isso, falar de graça humana é falar de um programa político radical. Não no sentido institucionalista, mas radical porque vai à raiz. Porque desafia as estruturas e anuncia que outro modo de viver é possível — e já está acontecendo. Nas frestas. Nos becos. Nos terreiros. Nas cozinhas populares. Nas escolas ocupadas. Nas quebradas organizadas. A graça não é utopia futura: é evidência do presente que o sistema tenta silenciar. É memória do que fomos e promessa do que podemos ser.

Então sim, tudo passa: o mandato, a fama, o salário, o algoritmo, o discurso. Mas a graça — essa graça profundamente humana, enraizada na práxis, na autonomia e na luta simbólica e espiritual dos povos — essa graça permanece. E se um dia o mundo mudar, não será pela força bruta, nem pela repetição de slogans. Será porque a graça venceu. Porque nos tornamos capazes de viver com sentido, com beleza, com liberdade — como quem dançou no meio do incêndio e, ainda assim, ensinou a sonhar.

Se tudo passa — a política, o tempo, o nome —
talvez o que fique seja esse sopro:
essa lembrança de que o humano ainda pode ser mais do que cálculo.

E se a graça é divina, ótimo.
Mas mesmo que não seja —
humana, sei que é.

Tem Luta!

Sigamos!!


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