O Mercado como Nova Religião do Estado
“Todo poder que se diz técnico, deseja ser incontestável.”
— "A Geometria dos Saberes"
Há algo de
profundamente religioso na linguagem econômica de nosso tempo. Os ministros e
presidentes de bancos, os porta-vozes de federações industriais e as agências
de rating ocupam o espaço simbólico que, outrora, cabia aos sacerdotes do
destino. A liturgia mudou, mas o rito permanece: números substituíram oráculos;
relatórios tomaram o lugar dos evangelhos. A economia tornou-se o novo templo
do Estado — e o mercado, sua divindade invisível.
As manchetes
sobre crescimento, comércio exterior, política tributária e relações
diplomáticas não apenas informam: elas ordenam o mundo. Cada dado publicado —
inflação, superávit, taxa de juros — atua como mandamento moral. “É preciso
ajustar”, “é necessário conter”, “é fundamental recuperar a confiança”.
Palavras técnicas, porém carregadas de fé. O dogma é claro: o equilíbrio fiscal
é virtude; o déficit, pecado.
A retórica da
eficiência não se contenta em descrever fatos — ela os cria. O discurso
econômico fala com voz de lei natural, imune à contestação. Quando o ministro
anuncia cortes em nome da “responsabilidade”, quando o embaixador celebra
acordos de exportação como “provas de maturidade”, o que se escuta não é apenas
política: é teologia secular. O Estado age como servo do altar do mercado
global, e o cidadão, reduzido a contribuinte ou consumidor, aprende a orar por
estabilidade.
Mas o que
chamamos de estabilidade não é senão a normalização da desigualdade. A
tecnociência, o capital e o Estado formam uma tríplice aliança que governa não
apenas os fluxos de dinheiro, mas o imaginário social. A fotografia das
reuniões de cúpula — ternos escuros, bandeiras ao fundo, apertos de mão — é o
ícone moderno da fé na razão econômica. Nela, a estética da neutralidade
substitui o drama da vida real: nenhum rosto popular, nenhuma paisagem de
trabalho, nenhuma dúvida. O poder se faz belo pela ausência do povo.
O resultado é
um tipo de anestesia coletiva. Quando a economia se torna linguagem única, a
crítica parece heresia. Não há espaço para perguntar para quem serve o
crescimento, que vida ele sustenta, que vínculos destrói. O
progresso vira fetiche, e o cálculo, religião. A política se reduz à gestão dos
efeitos colaterais da fé econômica.
A Geometria dos
Saberes nos ensina que toda forma de conhecimento é viva — e que adoece quando
um vértice domina os outros. No pentágono do saber contemporâneo, a Ciência e a
Política estão hipertrofiadas, enquanto a Filosofia, a Arte e a Espiritualidade
atrofiam-se. O humano — esse centro pulsante do pensamento — desaparece,
engolido pela abstração das metas e índices. O resultado é uma civilização que
calcula tudo, mas compreende pouco.
Reencantar o
real significa devolver o tempo à economia, o corpo à política, o sentido à
técnica. Significa lembrar que o lucro é apenas uma tradução parcial da vida —
e que nenhum gráfico explica a fome, a esperança ou o amor. O desafio é
reconstruir o elo perdido entre saber e cuidado, entre número e mundo.
Porque toda
economia, se for verdadeiramente humana, deve responder a uma única pergunta: que
espécie de futuro estamos financiando?
𝓜ₕᵤₘₐₙₒ — a medida do humano não está no
cálculo, mas no cuidado que o cálculo sustenta.

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