Entre urnas e algoritmos: o sentido de votar no século das máquinas
O Brasil aprendeu a votar antes de aprender a confiar.
A cada eleição, repetimos o rito: filas, cabines, urna, boletim. Tudo parece funcionar, mas algo se move no subterrâneo — uma mistura de cansaço e desconfiança. A tecnologia evoluiu, os sistemas se sofisticaram, e mesmo assim o sentimento de pertencimento parece diminuir. Votamos muito, mas participamos pouco.
Nos bastidores
do processo eleitoral, há uma rede de atores e forças que moldam o que chamamos
de democracia: a Justiça Eleitoral, os partidos, as candidaturas, o Ministério
Público, a imprensa, as plataformas digitais, os financiadores, as comunidades,
os eleitores. Todos coexistem em tensão — disputando não apenas votos, mas atenção,
linguagem e verdade.
O coração do
sistema, a Justiça Eleitoral, carrega uma virtude rara: é tecnicamente sólida,
exemplar em transparência e eficiência. Mas há algo que ela ainda não alcança
sozinha — o imaginário coletivo. A confiança não nasce apenas da
técnica; nasce da compreensão. E essa compreensão só floresce quando o
conhecimento circula de modo sensível, humano, acessível.
Do outro lado,
as plataformas digitais criaram um território de ruídos e sombras, onde
a informação é moldada por algoritmos invisíveis. A disputa eleitoral deixou de
ser apenas de ideias e passou a ser também de dados. O poder, que antes se
concentrava em palanques e partidos, agora se infiltra nas telas, nas bolhas e
nos impulsionamentos.
A imprensa
tenta reagir, equilibrando checagem e espetáculo; o Ministério Público
vigia, mas é pressionado pelo ritmo da rede; as comunidades buscam voz,
e o eleitorado tenta, a duras penas, compreender o que realmente está em
jogo.
No fundo, o que
está em disputa é o sentido do voto.
Votar não é apenas apertar números numa máquina: é afirmar que o comum existe,
que a sociedade é capaz de decidir sem violência, que há futuro possível na
convivência.
Por isso, a eleição é também um ato espiritual, ainda que laico — é um gesto de
confiança depositado no outro.
Nos últimos
anos, o Brasil viveu um paradoxo: quanto mais precisos nossos sistemas, mais
vulnerável nossa fé coletiva.
Temos uma das urnas eletrônicas mais seguras do mundo, mas convivemos com
campanhas de desinformação que corroem o vínculo simbólico entre cidadão e
Estado.
É como se a democracia tivesse ficado tecnicamente perfeita, mas emocionalmente
incompleta.
O desafio agora
é reencantar o processo democrático — não com misticismo, mas com
sentido.
Precisamos falar de eleições como quem fala de cultura, de educação e de ética.
Transformar o voto em ato consciente de aprendizagem; a urna, em lugar de
encontro e não de medo.
Isso exige um esforço coletivo: jornalistas que informem com profundidade,
plataformas que sejam transparentes, instituições que dialoguem mais, escolas
que formem cidadãos, não apenas eleitores.
E toda relação viva precisa de cuidado.
Cuidar do voto é cuidar da própria ideia de humanidade: reconhecer que, mesmo em tempos de algoritmos, ainda somos nós que escolhemos o rumo das coisas.
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