A dimensão humana para uma economia do ser




Vivemos um tempo em que o humano, ao multiplicar suas criações, arrisca perder a si mesmo.
A economia, que deveria ser a arte de cuidar da casa comum, tornou-se máquina autônoma, insensível, guiada pelo cálculo e pela abstração.
A ciência, que nasceu do espanto, curva-se cada vez mais à eficácia; e a cultura, que deveria servir à comunhão dos sentidos, é capturada pelo mercado das identidades e pela estetização do consumo.

Nesse cenário, o humano parece dissolver-se naquilo que produz — e, quanto mais domina o mundo, menos o habita.
Por isso é urgente recuperar um princípio primeiro e último: nenhuma economia, ciência ou cultura tem sentido se não colocar a pessoa humana — em sua totalidade sensível, histórica e criadora — no centro e no fim de sua ação.

E talvez, para restaurar esse centro, seja preciso também recuperar a irreverência, essa faísca rebelde que faz o espírito não aceitar a ordem do absurdo.
É dela que brota a consciência viva — e é nela que o humano reencontra sua morada.

A centralidade do humano não é um luxo moral; é uma necessidade ontológica.
O ser humano é o único capaz de perceber o próprio ser — e dessa percepção nasce a responsabilidade.
As dimensões que sustentam essa centralidade não são abstrações, mas realidades: estão inscritas na geografia da vida, nas relações entre espaço e tempo, na linguagem que nos constitui e nos sentidos que nos ligam ao mundo.

O humano é, portanto, um acontecimento do mundo — e o mundo, uma extensão sensível do humano.
Quando a economia se esquece disso, perde o chão; quando o pensamento ignora isso, perde a alma.
É a partir desse chão serciente, vivo e histórico, que o ser humano reencontra o seu lugar: não como senhor da terra, mas como parte consciente de sua morada.

O sistema capitalista, ao transformar a propriedade privada dos meios de produção em dogma, consolidou uma forma de dominação que, de tão naturalizada, tornou-se invisível.
A propriedade privada — núcleo de sua estrutura — tende à concentração e à formação de monopólios, exigindo cada vez mais o apoio do Estado e das instituições internacionais para manter-se viva.
Essa economia precisa ser sustentada artificialmente, porque suas próprias contradições corroem a legitimidade de sua existência: quanto mais social é a produção, mais absurda se torna a apropriação privada dos frutos do trabalho.

O capital é um edifício cuja fundação é o corpo dos que trabalham e cujas colunas são as crises que o Estado repara.
Mas o verdadeiro limite dessa estrutura não é apenas econômico — é ontológico: quando o ter suplanta o ser, o mundo se torna inabitável.

Daqui nasce a necessidade de outra forma de vida: a propriedade coletiva dos meios de produção, não como dogma, mas como caminho de reconciliação entre trabalho e sentido.
Coletivizar é devolver o poder de criar ao próprio criador; é permitir que a produção seja expressão da vida, e não sua negação.
Quando organizada democraticamente, a propriedade coletiva não é opressão do indivíduo, mas libertação da coletividade; não é apagamento das diferenças, mas cultivo das singularidades dentro de um projeto comum.
Ela se orienta por fins sociais e ambientais definidos de maneira compartilhada, transformando a economia em economia da liberdade — aquela que não se subordina ao lucro, mas à realização concreta das necessidades e potencialidades do povo.

Nesse horizonte, a economia volta a ser instrumento da política, e a política, expressão do humano.
A soberania nacional reencontra a justiça social, e ambas se reconciliam com a responsabilidade planetária.
Produzir, nesse novo sentido, é cuidar — cuidar do alimento, da morada, do tempo, da palavra, do outro.
Cuidar é o verbo originário da economia do ser.

Mas para que esse novo mundo nasça, é preciso realizar um gesto radical: deixar de ser dono e voltar a habitar o ser.
Deixar de ser dono é renunciar ao mito da dominação — o mito do homem como senhor e possuidor da natureza, herdeiro do racionalismo cartesiano e das máquinas industriais.
Habitar o ser é voltar a compreender o mundo como espaço de comunhão.
É reconhecer que somos feitos da mesma substância daquilo que transformamos: o ar que respiramos, a terra que tocamos, o corpo que trabalha, o tempo que se consome.
Habitar o ser é, portanto, um ato de humildade ontológica e de potência política.
É perceber que o verdadeiro sentido da liberdade não está em possuir o mundo, mas em pertencer conscientemente a ele.

“Não precisamos de quebra-galho tampouco de favorzinho.”

Não queremos paliativos, concessões ou condescendências: queremos respeito.
O direito não é dádiva; é fundamento.
A liberdade não é concessão; é condição.
Quando um povo começa a mendigar por aquilo que lhe é devido, o tecido da dignidade já foi rasgado.
Por isso, a palavra precisa voltar a ter a altivez do gesto, e o gesto, a inteireza da consciência.

Essa afirmação — de que não precisamos de favores, mas de respeito — só floresce num ambiente de irreverência e rebeldia, onde o espírito humano se levanta contra a dominação e a alienação.
A irreverência é a recusa do adestramento — o não aceitar o mundo tal como ele se oferece.
Ela nasce do mesmo lugar onde nasce a criação: da consciência que desperta.

E essa consciência é o verdadeiro templo do ser — um espaço que não tem tempo nem fronteira, que se multiplica a cada juventude que vive, de modo simples, a plenitude da vida.

Ser irreverente não é ser desrespeitoso; é ser incansavelmente vivo.
É negar a submissão travestida de prudência.
É compreender que o verdadeiro respeito não nasce da obediência, mas da reciprocidade entre consciências despertas.

A irreverência é, portanto, o gesto originário da emancipação — um sopro de juventude eterna, que não se mede em idade, mas em intensidade.
Os espíritos que nunca envelhecem são aqueles que não consentem com o absurdo, que não fazem da covardia virtude, nem da acomodação sabedoria.

A rebeldia verdadeira não destrói — revela.
Ela rompe o véu da alienação e devolve o mundo ao olhar nu.
É a força que faz do pensar um ato, e do ato, um pensamento encarnado.

Toda consciência rebelde é, no fundo, uma forma de amor ao ser —
porque só quem ama profundamente o mundo se recusa a aceitá-lo deformado.
A alienação é o esquecimento do ser; a irreverência é sua lembrança súbita e luminosa.

Habitar a consciência é, pois, habitar o lugar onde o tempo não pesa.
Ali, o passado não oprime, o futuro não assombra — tudo é presença.
É nesse espaço sem medidas, onde cada juventude se multiplica, que a vida se reinventa e se reconhece.
A simplicidade, longe de ser pobreza, é plenitude: o modo como o ser repousa em si mesmo, sem máscara, sem cálculo, sem medo.

Por isso, o caminho da irreverência não é o da agressão, mas o da consciência que se sabe infinita.
É o caminho dos que olham o poder nos olhos e dizem:

“Não somos súditos, somos seres.”

Dos que olham a técnica e lembram:

“Não és senhora, és instrumento.”

Dos que olham o tempo e compreendem:

“Não és prisão, és passagem.”

E dos que olham a si mesmos e afirmam:

“Sou porque habito — e habito porque amo.”

Nessa necessária economia do ser, a técnica volta a ser instrumento da criação, e não seu cárcere.
A ciência recupera o espanto diante do real, e a cultura, sua função mais alta: reconciliar o humano com o cosmos.

A política deixa de ser mera administração da escassez e torna-se arte da abundância partilhada —
abundância de tempo, de cuidado, de sentido.

O trabalho, libertado da lógica da mercadoria, volta a ser expressão da criatividade e do vínculo.
É quando o fazer reencontra o sentir que a história se abre para outra civilização possível.

A nova economia do ser não propõe apenas reformas: propõe uma reviravolta do olhar.
Propõe uma razão pública que volte a ser ecológica e solidária;
uma economia que devolva à Terra o direito de respirar;
uma cultura que refaça a ponte entre técnica e ternura.

A centralidade humana não é antropocentrismo — é antídoto contra a desumanização.
É o reconhecimento de que a humanidade só será plena quando aprender, de novo, a habitar o ser com amor e respeito.

E talvez, no fim, tudo se resuma a um gesto simples e revolucionário:
habitar o mundo como quem o ama e o respeita.

Porque quem ama e respeita o mundo não o explora, o cultiva.
Quem ama e respeita o ser não o domina, o revela.
E quem ama e respeita o outro não o usa, o reconhece.

Essa é a promessa e a tarefa: fazer da consciência nossa morada, e da irreverência, nosso modo de habitar o ser.

Sigamos.


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