Consciência de Classe no Século XXI: Entre a Fábrica, o Algoritmo e o Sonho


No início do século XX, entre guerras e revoluções, o filósofo húngaro György Lukács escrevia sobre um tema que ainda hoje nos inspira e questiona: a consciência de classe. Ele via, com os olhos da história, que sofrer não basta. É preciso compreender o porquê do sofrimento, quem lucra com ele e, mais ainda, como organizá-lo como força transformadora.

Lukács diferenciava duas realidades: a classe em si e a classe para si. A primeira é objetiva — todos os que vendem sua força de trabalho, ainda que não se reconheçam como parte de um todo. Já a classe para si nasce quando essas pessoas passam a se enxergar como parte de um mesmo processo de exploração e, por isso, decidem lutar juntas. A consciência de classe é, então, mais do que uma noção moral ou uma ideia sociológica: é uma forma de despertar coletivo.

Mas entre Lukács e nós há um século de abalos. No tempo dele, a luta era feita no chão da fábrica, no sindicato, na greve, na construção de partidos. A industrialização avançava, o socialismo real surgia como horizonte concreto e o conflito entre capital e trabalho era corpo a corpo. Após a Segunda Guerra, vimos nascer o chamado “Estado de bem-estar social” em algumas regiões do globo, sobretudo na Europa, enquanto, em outros lugares, como na América Latina, a democracia era sequestrada por ditaduras.

O século XX terminou com a queda dos regimes socialistas, a expansão do neoliberalismo, a financeirização da vida e a promessa falsa de que o mercado resolveria tudo. No início do século XXI, essa promessa estoura: a precarização se torna regra, o planeta entra em colapso climático, a política vira espetáculo e a verdade, mercadoria. Estamos em plena crise civilizatória.

E é nesse cenário que a pergunta de Lukács se reatualiza: como formar consciência de classe em tempos de desagregação?

Hoje, a exploração não desapareceu — ela apenas mudou de forma. Ela está nos aplicativos de entrega, nas metas absurdas do telemarketing, na terceirização do trabalho docente, na evasão escolar, na exclusão digital, no racismo estrutural que impede a mobilidade social. Está também na devastação ambiental, na especulação de terras, no envenenamento do solo, nas migrações forçadas, nas tragédias ditas "naturais".

A consciência de classe, agora, precisa surgir em meio aos escombros do bem-estar social, das democracias tuteladas, dos direitos que se desmancham em discursos. Ela precisa renascer nas redes digitais, nos territórios, nas escolas públicas, nos coletivos, nos fóruns populares, nos grupos de jovens e trabalhadores que resistem, ainda que sob invisibilidade.

Nesse contexto, surge uma nova figura histórica: a inteligência artificial. E com ela, a urgência de outra pergunta: quem vai programar o futuro?

A IA pode ser a grande aliada da vigilância, do controle, da desinformação — ou pode ser instrumento de formação, de organização, de emancipação. Depende das mãos que a criam, dos corpos que a alimentam, das consciências que a orientam. É preciso disputar a máquina, não como fetiche, mas como ferramenta a serviço da vida.

A formação da consciência de classe hoje exige que aprendamos a usar a tecnologia sem sermos usados por ela. Exige que criemos plataformas que não sejam reprodutoras da lógica capitalista, mas expressões da luta por soberania simbólica, cultural e epistemológica. Exige que os espaços populares de formação se reinventem, que o chão da escola e o da comunidade se encontrem com o chão do código, da ciência, da linguagem.

Lukács nos ensina que a consciência verdadeira não se forma apenas com informação, mas com vivência, com prática, com debate. Ela é mediação. E a mediação precisa ser feita com a palavra, com a escuta, com o enfrentamento das contradições concretas.

Formar para a vida, então, é mais do que preparar para o mercado. É preparar para a história. É permitir que cada jovem, cada trabalhador, cada mulher negra, cada indígena, cada periférico, veja-se como sujeito de uma história coletiva, capaz de mover o mundo com suas mãos, sua voz, sua memória e sua imaginação.

Consciência de classe é isso: não um saber escolar, mas um saber insurgente. Não uma verdade revelada, mas uma pergunta viva.

Porque toda consciência começa onde termina o silêncio.

 E todo despertar começa com uma recusa: não aceito mais viver como se tudo fosse natural.

Tem Luta!!

Sigamos!!


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