Quando o púlpito invade o plenário


A Câmara dos Deputados aprovou, por ampla maioria, a urgência para a criação de uma bancada cristã. Foram 398 votos a favor, 30 contra — um placar que, mais do que números, revela o peso simbólico da religião como força de organização política no Brasil contemporâneo. O presidente da Casa, Hugo Motta, apressou o rito e justificou o gesto com naturalidade: “a organização de uma bancada cristã significa a organização do movimento conservador nessa Casa”. Dito e feito — o púlpito, de fato, invadiu o plenário.

O que parece apenas um expediente regimental — uma pauta entre tantas — é, na verdade, um sintoma profundo: a religião institucionalizada como instrumento de poder parlamentar. As Frentes Católicas e Evangélicas, ao proporem uma coordenação conjunta, ensaiam a unificação de uma moral política que pretende representar a fé de milhões, mas o faz a partir de um único horizonte teológico: o do conservadorismo moral. A palavra “cristão”, que deveria apontar para a pluralidade do amor, é reduzida à fronteira da doutrina.

Henrique Vieira, pastor e deputado do PSOL, rompeu o silêncio do plenário com um gesto raro: lembrou que também é cristão — mas que a fé não é propriedade de blocos partidários. 

  • “Não há esse bloco monolítico pensando e votando da mesma forma”, disse. E foi além: “A criação de uma bancada cristã que pretende falar em nome de todos os cristãos é um desrespeito à democracia, ao Estado laico e à própria religião.” Sua fala soou como um ato profético: o resgate da fé como liberdade, não como controle.

Mas o ruído simbólico é maior do que parece. A aceleração do rito legislativo — feita logo após um culto ecumênico na própria Câmara — revela que o laicismo institucional está sendo corroído por dentro, em nome de uma harmonia aparente. A religião, que deveria humanizar o poder, passa a legitimá-lo. O sagrado se torna ferramenta de governo. E o plenário, espaço da razão pública, converte-se em palco litúrgico onde se disputa quem tem o direito de falar em nome de Deus.

O gesto de Vieira, nesse contexto, recoloca a espiritualidade no lugar de onde nunca deveria ter saído: o da ética. Ele lembra que a fé não é inimiga do Estado, mas tampouco pode ser seu selo moral. Quando a religião se transforma em aparato de poder, trai sua própria origem — o verbo religare, o ato de ligar, de unir. No momento em que o amor vira bandeira partidária e a devoção se converte em dispositivo de controle, a transcendência se apaga e sobra apenas ideologia.

Há algo de profundamente humano no que Vieira tenta restituir: a dignidade da crença. Ele fala como quem ainda acredita que o evangelho é antes de tudo encontro — o milagre de reconhecer o outro como semelhante. Seu discurso não é o de um líder religioso, mas o de um homem público que compreende a fé como prática do cuidado e da convivência.

O problema, contudo, não está apenas no avanço da bancada cristã; está na passividade do país diante dela. Quando 398 parlamentares votam pela urgência de uma pauta que rompe o princípio do Estado laico, e quase ninguém se espanta, o que se vê é uma sociedade que naturalizou o sagrado como poder.

Talvez por isso a fala de Vieira soe tão dissonante: porque lembra que a política, sem ética, vira idolatria — e que o poder, quando se traveste de fé, transforma a esperança em dogma.

Enquanto o púlpito insistir em invadir o plenário, o Brasil continuará oscilando entre o altar e o abismo. E talvez o único milagre possível seja este: que a palavra volte a ser ponte, e não trincheira.


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