A Geometria da Propaganda: o uso político do IEG-M e a deformação do saber público
“Toda vez que o poder usa o espelho da imprensa para se admirar, o povo desaparece da imagem.”
A manchete de
capa do Diário de Suzano, estampando a frase “TCE reconhece Suzano
entre as 25 cidades de SP com melhor gestão efetiva”, oferece uma
oportunidade preciosa — e preocupante — de reflexão.
Não se trata apenas de uma notícia. É um ato simbólico de poder, em que
a forma jornalística e a presença institucional se fundem num
mesmo gesto de autoafirmação política.
Na fotografia,
o prefeito divide o enquadramento com o presidente da Assembleia Legislativa, o
governador do Estado e membros do Tribunal de Contas.
A composição visual, emoldurada por bandeiras e cortinas vermelhas, encena uma liturgia
do prestígio público.
Mas por trás do cerimonial, há uma questão epistemológica central:
quando o Estado se fotografa a si mesmo como virtude, o conhecimento público
é substituído por imagem — e o jornalismo por testemunho de fé.
I. O fato e
sua metamorfose simbólica
O Índice de
Efetividade da Gestão Municipal (IEG-M) foi criado para medir, de modo
técnico, a aderência das políticas municipais às boas práticas de planejamento
e gestão.
Nada mais legítimo.
O problema surge quando o resultado dessa medição, que deveria servir à autocrítica
administrativa, é transformado em distinção moral e capital político.
A manchete não
informa — consagra.
Não investiga — reverencia.
Não explica o índice — o canoniza.
O gesto
jornalístico que deveria aproximar o cidadão da realidade da gestão, acaba reforçando
o distanciamento simbólico entre governantes e governados, ao exibir o
poder como espetáculo.
II. Leitura
geométrica: o deslocamento do centro
Pela Geometria
dos Saberes, o conhecimento só é verdadeiro quando mantém o equilíbrio
entre seus cinco vértices:
Ciência (razão), Filosofia (sentido), Arte (expressão), Política (ação) e
Religião (valores).
Na notícia de
capa, esse equilíbrio é rompido.
O pentágono do saber sofre dupla deformação:
- O vértice da Política domina todos os demais,
convertendo a Ciência (o dado técnico) em argumento de autoridade.
- O vértice da Religião simbólica — aqui entendida como fé cívica —
é capturado para criar um culto à figura do gestor e do Estado.
O jornal, em
vez de exercer o papel filosófico de mediação crítica, se torna instrumento
litúrgico do poder, repetindo o rito da legitimação e apagando o vértice da
Filosofia — o da dúvida.
III. O uso
da forma jornalística como vestimenta da propaganda
A manchete,
pela diagramação, pelo destaque e pela escolha fotográfica, simula neutralidade
técnica, mas atua como mensagem de endosso político.
O jornalismo, nesse caso, empresta ao poder a sua forma e sua credibilidade —
transformando-se em tecnologia simbólica de dominação.
O discurso da eficiência administrativa substitui o da justiça social; o número
substitui o sentido; o cerimonial substitui o povo.
Essa operação
não é apenas comunicacional. É epistemológica.
Ela altera o modo como a cidade conhece a si mesma.
Ao confundir gestão com governo, e governo com virtude,
o saber público é distorcido — a episteme se curva diante da imagem.
IV. A cena e
o testemunho
A presença
conjunta do governador, do presidente da Assembleia e de conselheiros do TCE
confere à cena uma aparência de “ato de Estado”.
Mas é justamente aí que o princípio republicano se inverte:
o órgão de controle é transformado em testemunha de louvor.
Não há fiscalização — há coro.
A foto, em
termos geométricos, é um triângulo simbólico de poder:
no topo, a autoridade técnica (TCE);
à base, o governo estadual e o municipal.
O jornal funciona como o plano que projeta a luz sobre a cena, criando o efeito
de verdade — uma verdade teatral.
V.
Diagnóstico geométrico
Vértice |
Função
Original |
Estado
na Notícia |
Consequência |
Ciência
(TCE / IEG-M) |
Produzir
dado técnico |
Subordinada
à Política |
Conhecimento
transformado em símbolo |
Filosofia
(Crítica) |
Interrogar
o sentido do reconhecimento |
Ausente |
Ausência
de reflexão pública |
Arte
(Imagem e Linguagem) |
Expressar
e sensibilizar |
Instrumentalizada |
Estética
da reverência |
Política
(Poder) |
Agir
pelo bem comum |
Dominante |
Autopromoção
institucional |
Religião
(Ética Pública) |
Sustentar
o valor do coletivo |
Corrompida |
Idolatria
da autoridade |
O centro da
figura — a consciência pública — é deslocado.
A geometria do saber se transforma em pirâmide de poder.
VI. A
reconstrução do centro
Recuperar o
equilíbrio significa reconduzir o dado ao diálogo, e a imagem ao sentido.
O IEG-M pode e deve ser ferramenta de diagnóstico — mas não de culto.
O Tribunal de Contas tem o dever de fiscalizar, não de celebrar.
O jornalismo tem o dever de informar, não de emoldurar o poder.
“A cidade só
se reconhece quando o espelho não está voltado para o trono.”
A Geometria
dos Saberes nos lembra que a verdade pública não se mede em rankings nem se
fotografa em solenidades; ela se constrói no encontro entre a razão e o povo,
entre o fato e o sentido.
Enquanto a forma da notícia for usada como máscara da propaganda, a democracia
continuará refém do espetáculo do poder.
Imagem: Reprodução da capa do Diário de
Suzano (edição de 13 de outubro de 2025).
Fonte: Diário de Suzano — “TCE reconhece Suzano entre as 25
cidades de SP com melhor gestão efetiva”.
Uso para fins críticos e educativos (art. 46, III, Lei 9.610/98).
Suzano,
outubro de 2025
Assinam: Coletivos, cidadãs e cidadãos comprometidos com a ética
pública, a comunicação livre e a verdade republicana.
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