O Tempo e o Fogo
Ontem o fogo subiu o morro. Não era um incêndio distante, desses que aparecem na televisão e passam logo depois de uma reportagem sobre economia. Era o fogo vivo, ardendo no pasto, chamando pelo nome da gente, queimando perto das raízes e dos telhados. Dava pra sentir o cheiro da terra virando cinza, e entendi o que é o tempo quando decide falar com força: ele não avisa, não pede licença, apenas mostra que mudou. A colina que sempre resistiu, verde mesmo em agosto, amanheceu seca demais — e bastou um descuido, um fósforo, um gesto velho de limpar o terreno com fogo para que a natureza, cansada, respondesse com fúria.
Dizem
que as queimadas fazem parte do ciclo da roça, que o pasto precisa se renovar,
que é assim desde os tempos dos avós. Mas não é mais o mesmo tempo. O sol de
agora é outro, a umidade foi embora, os ventos mudaram de rumo, e o fogo já não
obedece a ninguém. Desta vez ele pegou onde nunca tinha pegado. Subiu o morro,
cercou árvores antigas, assustou pássaros, e fez o coração da gente disparar.
Quatro pessoas — só quatro — correram com enxadas e coragem, enfrentando o
calor e a fumaça antes que chegassem os bombeiros. E quando a noite caiu, o que
restava era o cheiro forte da cinza, o silêncio das plantas e um sentimento
misto de medo e gratidão.
A
roça ensina assim, com dureza e beleza. Somos o proletariado do campo, gente
que vive entre o trabalho e o cuidado, que conhece o peso da seca e a força da
solidariedade. Vivemos debaixo de um céu que já não é o mesmo — o clima mudou,
o tempo encurtou, a chuva se faz esperar. E no entanto, continuamos aqui, fiéis
ao chão, atentos aos sinais. As mudanças climáticas não são uma teoria para
nós, são uma ferida aberta: o gado com sede, o solo rachado, o fogo que se
alastra onde nunca devia. O que o noticiário chama de crise global, nós
chamamos de cotidiano.
Mas
não foi só a terra que queimou. Queimou também a ilusão de que tudo podia
continuar igual. Queimou a certeza de que bastava esperar o Estado, de que os
velhos costumes dariam conta do novo tempo. O fogo, no fundo, foi uma mensagem
— dura, mas necessária. Ele disse: “acordem, cuidem, reorganizem o viver”. E
foi isso que fizemos. Rezar, agir, apagar o fogo, salvar o que restou. Quando a
chama se apagou, a colina estava escura, mas a esperança, acesa. O que ardeu em
labaredas voltou em forma de consciência.
Hoje,
olhando o terreno coberto de cinza, dá para sentir que o chão também fala. Ele pede
cuidado, pede mudança. Pede que a comunidade se fortaleça, que as mãos que
ontem seguraram enxadas agora plantem árvores e redes de proteção. Não há
fronteira entre o campo e a cidade, entre o humano e o natural — há uma só
vida, que clama por atenção. Quando o pasto queima, o futuro arde junto. Por
isso, o fogo desta semana não será lembrado apenas como tragédia, mas como
marco. A partir dele, sabemos que o tempo mudou — e que nós também precisamos
mudar com ele.
E
assim seguimos: com fé no que brota da cinza, com o coração em vigília e o
espírito da roça vivo em nós. Porque há um Brasil profundo, silencioso e
generoso, que ainda aprende todos os dias a enfrentar o fogo sem perder o amor
pela terra.
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