SEGUNDA CARTA PÚBLICA À SOCIEDADE DE SUZANO


Por uma Política de Reconhecimento e Coragem Cívica

“Toda cidade é o retrato de sua consciência. O poder que a domina é o reflexo daquilo que o povo tolera, mas também daquilo que o povo é capaz de transformar.” —

Fragmentos para uma genealogia da vida comum

 Um convite à cidade que queremos compreender

Suzano, nossa cidade viva, que pulsa entre montes, rios e avenidas,
carrega em si tanto o peso de sua história quanto a promessa de seu futuro.
Somos uma comunidade de muitas origens e trajetórias, marcada pela luta do trabalho, pela fé, pela diversidade de bairros e sonhos. Mas há momentos na vida de um povo em que o amor pela cidade precisa se transformar em lucidez — e o afeto, em coragem.

Esta carta nasce desse sentimento: não para acusar, mas para convidar cada pessoa, instituição, coletivo e servidora olhar de frente para o que nos tornamos.
A cidade só será realmente nossa quando formos capazes de compreendê-la por dentro — com suas grandezas, suas contradições e suas feridas.

Falamos de Suzano, com seus rios ameaçados, suas escolas fragilizadas, seus trabalhadores exaustos, sua fé manipulada e sua política cada vez mais distante da vida real das pessoas. Falamos do que vemos, do que sentimos e do que sabemos —
porque é conhecendo o que somos que poderemos decidir o que queremos ser.

Nos últimos anos, aprendemos que não há mudança possível sem participação.
Mas a participação exige entendimento. E o entendimento começa quando paramos de aceitar o que nos fere como se fosse normal. É tempo de compreender as engrenagens que nos governam —as visíveis e as invisíveis —,para que a cidade volte a se reconhecer como comunidade de cidadãos e não apenas como palco de interesses.

Esta carta, portanto, é um chamado à consciência coletiva. Um gesto de amor político, de reencontro com o comum. Queremos, juntos, ler Suzano: suas práticas de poder, suas repetições, seus silêncios e também suas resistências. Somente uma cidade que se conhece pode se transformar.

1. A cidade como campo de forças

Suzano vive um tempo de consolidação de um poder local híbrido, em que o Executivo, setores empresariais, concessionárias e parte do Legislativo se entrelaçam numa mesma teia de interesses. Essa rede opera sob aparência de normalidade democrática, mas reproduz um sistema de captura institucional que impede a renovação política e bloqueia a crítica pública.

A política local deixou de ser campo de deliberação e se converteu em sistema de manutenção de poder —um poder que se legitima pela propaganda, pela dependência econômica e pelo medo. Essa é a principal característica de uma cidade que ainda não aprendeu a diferenciar governo de sociedade.

2. O modelo de dominação municipal

A análise dos últimos ciclos administrativos revela um modelo composto por três eixos interdependentes:

O controle econômico-territorial: a ocupação e destruição progressiva da APA do Rio Tietê e outras áreas de proteção refletem um pacto entre setores da construção civil, grupos empresariais e o Executivo. O discurso do “progresso” encobre a transformação do território em moeda política.

O controle institucional: a subordinação do Legislativo — mediante cargos, contratos e favores — neutraliza o controle democrático e converte vereadores em correias de transmissão do Executivo. O mesmo ocorre com órgãos de controle e conselhos municipais enfraquecidos ou instrumentalizados.

O controle simbólico e moral: a captura da comunicação local, o uso populista da religião e a política de medo e favor substituem a consciência crítica por lealdade emocional. É a pedagogia da obediência, disfarçada de gratidão.

Esse tripé sustenta um tipo de poder que não governa, administra o silêncio. E o silêncio — sobre a terra, a escola, o trabalho e a dor — tornou-se política pública.

3. As instituições e o espelho do medo

O Executivo governa como se fosse proprietário; o Legislativo atua como seu prolongamento; as empresas terceirizadas agem como co-governantes. Enquanto isso, sindicatos, conselhos e associações se retraem, fragmentados entre a dependência de verbas e o receio de retaliação.

O funcionalismo, que deveria ser a espinha da legalidade, é mantido sob vigilância simbólica e administrativa. Quem fala, perde espaço. Quem se cala, é promovido.

Assim, a moral do medo substitui a ética do serviço público.

Nietzsche veria aqui o retrato da vontade de poder degenerada: o poder que já não cria, apenas conserva. O governante deixa de ser artífice do bem comum e passa a ser gerente da inércia.

4. O papel das elites econômicas e concessionárias

O poder econômico local já não se expressa mais pelo empreendedorismo produtivo, mas pelo rentismo do contrato público. A cidade produz pouco, mas distribui muito — aos mesmos.

As organizações sociais de saúde, empresas de limpeza urbana, transporte e coleta de lixo formam o núcleo operacional da dominação: concentram recursos, controlam empregos e financiam estabilidade política.

Esse arranjo cria uma burguesia contratual, que vive do Estado, não para o Estado.

 É ela quem impede o surgimento de uma economia popular, criativa e solidária.

 E ao inibir a independência econômica, destrói a base material da democracia.

5. A moral da servidão e a perda do espírito público

A população, submetida a esse ciclo, é lentamente treinada a não acreditar em si. Aceita o favor como se fosse direito e chama o medo de “respeito”. Nas praças, nas escolas, nos postos de saúde, o gesto de submissão tornou-se reflexo social.

Esse é o ponto mais trágico do processo: quando a dominação deixa de precisar de coerção e passa a operar como hábito. Nietzsche chamaria isso de espírito do rebanho moralizado —quando as pessoas se orgulham da obediência e desconfiam da liberdade.

6. Linhas de responsabilidade e pontos de inflexão

A transformação dessa realidade não virá de um ato messiânico, mas de um reordenamento da consciência cívica. Para isso, a cidade precisa reconhecer onde estão as chaves do poder e onde estão as brechas do possível.

Esses pontos são táticos: cada um indica um campo de disputa real — institucional, econômica ou simbólica —e abre caminho para a construção da Terceira Carta, voltada à reconstrução política e institucional da cidade, e as demais Cartas, que tratarão da reconstrução simbólica, do imaginário coletivo de Suzano e dos crimes que são cometidos contra a cidade e contra cada uma das pessoas que aqui vivem e fazem de seu cotidiano o lugar e o tempo de produção da justiça, da casa comum e do resgate de nossa humanidade.

Pela reintegração da cidade consigo mesma

Toda transformação começa por um ato de reconhecimento. O primeiro passo não é derrubar, mas entender o que se sustenta — e por quê. Não há inimigo externo mais forte do que a indiferença que se instala dentro de nós.

Suzano precisa, agora, de um novo pacto: um pacto de coragem e pertencimento, em que cada cidadã e cidadão se perceba como parte ativa da vida pública.

Os problemas que enfrentamos — do rio que é aterrado à escola que é esquecida —não serão resolvidos apenas com leis, promessas ou eleições. Serão enfrentados quando a população compreender que o poder local é um espelho da consciência coletiva: ele reflete, reproduz e perpetua aquilo que o povo tolera ou silencia.

Por isso, esta carta não termina — começa. Ela se abre para a cidade e pede resposta. Cada pessoa, grupo, sindicato, conselho, coletivo ou movimento que decidir participar, contribuir, debater ou propor —será parte da construção da nova política de Suzano: uma política feita de voz, de ética e de presença.

Que esta carta circule como um gesto de confiança: de que ainda é possível reerguer o sentido público da cidade, de que o poder pode voltar a servir à vida, e de que o medo não é destino, mas sintoma — curável pela coragem.

A cidade que se compreende pode se refazer. A cidade que se refaz pode, enfim, se libertar.

Sigamos!!

 

Suzano, novembro de 2025

Assinam esta carta:

  •  Cidadãs e cidadãos,
  •  coletivos, servidores públicos e movimentos sociais comprometidos com a ética republicana e a reconstrução democrática de Suzano.


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